DECIFRA-ME OU TE DEVORO: POR QUE A POLÍCIA É TÃO VIOLENTA?

Édipo expõe o Enigma da Esfinge. Obra de Jean Auguste Dominique Ingres, 1808. Museu do Louvre. Paris.


No carnaval de 1901, a imprensa noticiou cenas de violência da polícia contra os cidadãos friburguenses que procuravam se divertir durante os folguedos carnavalescos. Policiais que se achavam em ronda no Beco do Arco(atual Rua do Arco), causaram grande distúrbio, pondo em completa debandada os “mansos transeuntes e os inocentes assistentes”. Relatou o jornal O Friburguense que a polícia, “transformando sabre em sardinha”, a bambolear o corpo com gestos de capoeiragem e atitude agressiva, ameaçava a tudo e a todos, retirando-se somente quando o beco ficou deserto pela fuga precipitada do povo indefeso. Atualmente, quando a sociedade brasileira se reconciliava com a Polícia no episódio da ocupação do Complexo do Alemão em dezembro desse ano, no Rio de Janeiro, eis que começam a surgir denúncias de violência policial contra a população daquela comunidade. Mas quais são as raízes dessa violência policial? Do ponto de vista da história não se pode estabelecer sempre uma relação de causa e efeito, mas há fatores determinantes que merecem ser considerados. Como em Édipo Rei, de Sófocles, e tentando decifrar o enigma da esfinge, acredito que essa violência se inicie por influência da instituição da escravidão. Era a Intendência Geral da Polícia que, por solicitação dos senhores de escravos, aplicava açoites para correção dos mesmos. Esse “serviço” era remunerado pelo proprietário do escravo, que pagava por cento de açoites e entrava como renda da polícia. Quando em 1824, assumiu como Intendente Geral da Polícia, Teixeira de Aragão, expediu portaria recomendando ao administrador do Calabouço(prisão) que na aplicação dos castigos aos escravos se considerasse a idade e a robustez dos supliciados. Em outra portaria determinava aos senhores de escravos que “os trouxessem sempre vestidos, sem ofensa à moralidade pública e à piedade humana.” Estamos aí esboçando uma prática da polícia, o açoite de escravos, que pode ter degenerado a instituição policial na sua formação.


A polícia foi um instrumento utilizado por José Bonifácio, então ministro do Estado de Negócios de D. Pedro I, para perseguir adversários políticos. José Bonifácio não contemporizava com os opositores e assim inaugurou um sistema repressor e inquisitorial na polícia tornando-a uma arma terrível em suas mãos. Competia à polícia obedecer cegamente às suas ordens, constando nos registros policiais um período sombrio de degredos e prisões ditadas pela vesânia de Bonifácio e do próprio D. Pedro I, que viam conspiração contra o governo em qualquer manifestação, como simples reuniões e conciliábulos. D. Pedro I chegou a fazer uma proclamação ao povo criticando a violência dos policiais e declarando-se avesso ao despotismo e as arbitrariedades praticadas pela Intendência Geral de Polícia. Mas pode ter sido uma farsa para minimizar as tensões provocadas pela violência policial. O poder de polícia tinha um papel tão destacado na sociedade que gerou ídolos como o famoso “Onça”, uma espécie de “capitão Nascimento” de outrora. O “Onça” remonta ao século XVIII quando não existia ainda a instituição da polícia de acordo com o modelo atual e era comandada pelos governadores das capitanias. Luiz Vaía Monteiro, um jovem fidalgo português, ganhou a alcunha de “Onça” porque livrou a cidade do Rio de Janeiro da malta de malandros, mandriões e jogadores. Granjeou o reconhecimento público dos cariocas e marcou uma época durante a sua gestão. Bastava dizer “Aí vem Onça!” e a debandada era geral. Pode-se afirmar que a sua reputação chegou aos tempos atuais, pois ainda hoje quando alguém quer se referir há um tempo que já vai longe, um tempo antigo, se diz: “desde o tempo do Onça”. Já no início do governo de D. Pedro II foi atribuído ao Chefe de Polícia, delegados e subdelegados super poderes, através da Reforma de 1841 do Código de Processo Criminal, onde atribuições judiciais foram transferidas dos juízes de paz para a polícia, fenômeno que se denomina de policialismo judiciário.


Na República Velha é impressionante o comportamento libertino e devasso dos “praças”(policiais) em Nova Friburgo. Eram descritos frequentemente embriagados, da menor a mais alta patente, inclusive o comandante do quartel e viviam sempre envolvidos em jogatinas proibitivas. Na coluna “solicitadas” do jornal O Friburguense, que transcrevia as cartas dos leitores, boa parte das reclamações dizia respeito à má conduta dos policiais. As maiores vítimas da violência desses policiais eram os rapazes e não havia, nesse aspecto, distinção de classe social. Por fim, não se pretende aqui simplificar o problema nem esgotar a discussão, mas se percebe que a conduta policial nasce sob a égide da violência proporcionada pelo próprio governo central que utilizava essa instituição para fins casuísticos como perseguir desafetos políticos. Consequentemente, a instituição introjetou em sua cultura a violência respaldada pelo próprio governo. Acrescente-se a isso o cotidiano de violência provocada pelo cancro da escravidão em nossa sociedade. Essa conjuntura somente poderia resultar o que hoje percebemos na polícia, tanto civil, quanto militar: a violência. A polícia e a sociedade necessitam se reconciliar, mas cabe-nos cobrar de forma mais efetiva do governo estadual melhor preparo e melhor salário para os policiais, se quisermos uma boa polícia. Isso porque, em hipótese alguma, desejamos na polícia o belicoso “capitão Nascimento” de Tropa de Elite.

Fontes dessa matéria: Jornal O Friburguense e livro "História da Polícia do Rio de Janeiro", volume I, de Mello Barreto Filho e Hermeto Lima.



Nesse vídeo o historiador José Murilo de Carvalho fala sobre a violência no Rio de Janeiro, do BOPE, do jogo do bicho, da animosidade entre a população e a polícia e do papel do policial no Rio de Janeiro.




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