Higina Rozena de Castro Toledo. Neta do delator de Tiradentes, Jerônimo de Castro e Souza.
A população do 4° distrito de Nova Friburgo, sempre desejou ser reconhecida como a “Amparo dos Inconfidentes”, região que teve sua formação iniciada por um inconfidente, que lutara pela liberdade do Brasil juntamente com Tiradentes. Mas essa assertiva incomodou a muita gente que tinha a história provando o contrário, ou seja, de que Amparo foi, na realidade, refúgio de um traidor, delator de Tiradentes. Em 30 de novembro de 1938, no salão da escola estadual de Amparo, sob a presidência de Dante Laginestra, diversos moradores da localidade reuniram-se para definir a justificativa do nome “Amparo” ao respectivo distrito. O depoimento mais esperado era o do patriarca da localidade, Eugênio Gripp, na ocasião com 78 anos de idade e residente na região desde 1860, ano em que nascera. O provecto Eugênio Gripp declarou que o nome “Amparo” já era dado à localidade desde a sua infância, e por ouvir dizer, essa denominação vinha desde a Inconfidência Mineira. Segundo ele, o sargento Jerônimo de Castro e Souza era compadre e companheiro de Tiradentes na conspiração. Jerônimo, com receio de ser preso, fugiu para Cantagalo e posteriormente obteve uma sesmaria(terras), onde hoje é Amparo, construindo uma moradia e uma olaria, no qual ainda haviam vestígios. A denominação “amparo” foi dada pelo próprio Jerônimo que se julgava livre, “amparado” das perseguições contra os inconfidentes. Reza a tradição que ele disse à família: “estamos amparados” e crismou o seu novo domicílio de Amparo. Conforme Eugênio Gripp, esses fatos lhe foram narrados por Higgina de Castro Toledo, filha de José de Castro e neta de Jerônimo de Castro e Souza. Estava criado o mito de origem.
Vila de Amparo
Ainda de acordo com a tradição oral, Jerônimo de Castro e Souza era oficial do exército colonial, exercendo a função de cartógrafo em Minas Gerais ao tempo da insurreição. Abraçara a causa dos inconfidentes e participara da trama revolucionária. Durante a devassa(processo), ficou detido na prisão da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Como não havia provas para uma condenação, foi libertado, e desde então, embrenhou-se pelo interior da província fluminense indo parar onde hoje é Amparo, nome dado por ele por ter sido o “amparo” das vicissitudes e perseguições. No entanto, há quem afirme que Jerônimo foi um delator de Tiradentes, beneficiado com sesmarias pela Coroa Portuguesa em razão de sua delação. Mirtarístides de Toledo Piza, membro da Academia Fluminense de Letras, classifica Jerônimo de Castro e Souza como um “falso inconfidente”, um ignominioso traidor da pátria brasileira. Piza vê os românticos rasgos de heroicidade de Jerônimo como uma lenda. Pesquisando os “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”, Piza desconstrói o herói de Amparo provando que ele foi um traidor. Segundo Piza, Jerônimo de Castro e Souza era português, casado e alferes do Regimento de Cavalaria Auxiliar da Capitania do Rio de Janeiro, onde nascera e tinha domicílio. De acordo com os autos, Jerônimo foi delator de Tiradentes e diante do desembargador nomeado para a devassa, denunciou Tiradentes, e como prêmio pela delação, foi nomeado 1° tabelião da Vila de Cantagalo, tomando posse em 08 de outubro de 1815. Anos depois, mudou-se para o Morro Queimado e de acordo com Piza, “não foi para livrar-se das perseguições governamentais da época, mas, talvez, para esquecer o seu gesto ignominioso”. O depoimento de Jerônimo de Castro e Souza consta nos "Autos de Devassa da Inconfidência Mineira" - publicação autorizada pelo doc. nº 756-A, de 21 de abril de 1936 - Vol. IV, Rio de Janeiro, 1936, Ministério da Educação, Biblioteca Nacional, pp. 29 a 101). De acordo com os defensores dessa tese, Amparo foi o “Refúgio” de um traidor e como tal deveria ser denominada a localidade, e não, o “Amparo” de um inconfidente perseguido pela justiça portuguesa. De acordo com Clélio Erthal, em “Cantagalo, da miragem do ouro ao esplendor do café”, Jerônimo de Castro e Souza teria recebido o cargo de tabelião na vila de Cantagalo, como recompensa pela delação que prestou à Coroa Portuguesa. Em razão disso, fora sempre hostilizado pelos habitantes locais, vindo a refugiar-se no recanto por ele mesmo denominado de “amparo”, nas cabeceiras do Ribeirão de São José. A matéria “Um falso inconfidente”, de Mirtaristides de Toledo Piza, não deixa dúvidas de que Jerônimo foi um delator. Mas Jerônimo conseguiu que os moradores da Vila de Nova Friburgo acreditassem em sua versão de inconfidente perseguido e, segundo relatos, um de seus filhos foi vereador e outro juiz de paz, o que denota que tinham prestígio no município.
Em função das provas contra Jerônimo nos “Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”, uma lei estadual de 641, de 15 de dezembro de 1938, modificou a denominação de Amparo para Refúgio. O povo de Amparo protestou veementemente! Diante da pressão dos moradores de Amparo, uma Resolução de n°220, de 06 de abril de 1953, do prefeito municipal José Eugênio Muller, restabeleceu o nome de Amparo, em lugar de “Refúgio”. Igualmente a Assembléia Legislativa do Estado, em 22 de julho de 1957, ratificou o nome de Amparo como denominação do quarto distrito de Nova Friburgo. “Amparo” de um inconfidente ou “Refúgio” de um traidor? O triângulo, símbolo dos inconfidentes, faz parte do brasão de armas do distrito de Amparo, o que prova que será sempre difícil destruir a força criadora do mito de origem. Na próxima semana “A História do café de java: mais uma lenda em Amparo?”
Quando li em A Voz da Serra a matéria “Amparo comemora cem anos de reintegração a Nova Friburgo”, senti-me com a missão de escrever algo sobre esse importante distrito. Na celebração do centenário, com uma intensa e elaborada programação, as apresentações musicais são bem ecléticas como samba, forró, gospel, tango, baião, MPB, dança típica suíça e capoeira, traduzindo aquilo que é o Brasil, uma miscigenação de raças e culturas. Contadores de histórias, teatro de fantoches, concurso de boneca viva, jipeiros, gincana, atividades esportivas e os primeiros jogos florais de Amparo, complementam a programação. Comparando com a comemoração do cinquentenário, em 1961, quando era prefeito Amâncio Mário de Azevedo, a celebração fora bem mais cívica e singela, com desfile de escolas, bandas de músicas e à noite um grande baile no Cine-Theatro de Amparo. Aproveitando a presença de autoridades políticas como o prefeito, vereadores e deputados, os amparenses, na ocasião do cinquentenário, não perderam a oportunidade de apresentar sua reivindicação que era, à época, a pavimentação da estrada Zigue-Zag e a que ligava Amparo às Braunes, muito utilizada para se deslocar de Amparo ao centro de Friburgo. A ASSAMAM, Associação de Moradores e Amigos de Amparo era muito articulada e possivelmente pioneira em termos de mobilização de comunidades de bairros. No centenário de reintegração de Amparo à Nova Friburgo, não faltarão clamores e reivindicações aos políticos que comparecerem aos festejos, pois o bairro está absolutamente abandonado pelo poder municipal depois da tragédia de janeiro. É assustador os barrancos e encostas sustidas pela obra do Divino que não viram uma ação sequer do poder público municipal, estadual ou federal. No passado, foram muitas as rogativas dos amparenses pela melhoria de suas estradas e igualmente serão, no presente, para que os órgãos públicos tomem providências no sentido de arrefecer e minimizar o impacto das chuvas de verão.
Para realizar a minha pesquisa sobre a história de Amparo, por mais bizarro que possa parecer, encaminhei-me ao cemitério da vila. Percorri suas alamedas em busca dos túmulos dos primeiros habitantes locais. Os registros mais antigos que localizei foram de enterramentos no último quartel do século XIX. As famílias que se destacam nas transcrições das lápides são de alemães e suíços, a exemplo dos Gripp e dos Frossard, respectivamente, mas igualmente os Alves da Costa. Era natural que ali convivessem suíços e alemães, pois muitas das datas de terras abandonadas pelos colonos suíços, nos Núcleos Coloniais, foram transferidas aos colonos alemães, que vieram justamente para ocupar essas áreas desprezadas por alguns suíços. Já possuía dois importantes pontos de partida: a datação aproximada da ocupação de Amparo e a constatação de que suíços e alemães ocuparam aquelas terras. Logo, Amparo teria uma ocupação territorial que remonta ao século XIX e ocupada por colonos. Mas estava enganada, pois sua ocupação foi anterior, trinta anos antes. A ocupação de Amparo remonta ao final do século XVIII, no último decênio desse século, muito antes do que nos revela o cemitério da vila. Recorrendo a fontes secundárias, foi nos apontamentos do major Heber Alves da Costa, “Amparo Redivivo”, que uma janela abriu-se a respeito de um distrito que tem uma das histórias mais fascinantes.
A região onde se localiza Amparo pertencia inicialmente a Cantagalo. Mas com a criação do Termo de Nova Friburgo, em 1820, Amparo passou a pertencer-lhe, pois fazia parte da Freguesia de São José do Ribeirão. Era uma importante freguesia de Nova Friburgo, devido a uberdade de suas terras. São José do Ribeirão, Sebastiana(Estrada Friburgo-Teresópolis) e Paquequer(Sumidouro) eram importantes freguesias agrícolas de Nova Friburgo. Em 1857, a Freguesia de São José do Ribeirão possuía uma população de “mil almas”, onde cultivava-se o café e a cana-de-açúcar, com predominância do café, e com forte concentração de escravos. Não foi por acaso que quando extinguiu-se a escravidão no Brasil, os moradores da Freguesia de São José do Ribeirão foram um dos que mais se queixaram junto à Câmara Municipal, pleiteando que aquele órgão intermediasse a indenização pelos prejuízos causados.
No centenário de reintegração a Nova Friburgo, fica a seguinte pergunta: por que reintegração? Isso deve-se ao fato de Amparo ter sido anexado a Bom Jardim no início da República. Isso não agradou em nada a população local e depois de incessantes reivindicações conseguiram reverter a situação e tornar a anexar-se, em 1911, a Nova Friburgo. O governo republicano mexeu e remexeu muito as fronteiras dessa região, ao sabor dos caciques políticos. Mas a história de Amparo é muito instigante e cercada de mito e lenda, a exemplo do mito de sua origem: jactam-se seus habitantes ser Amparo a terra dos inconfidentes. Outra é a história de que foi graças ao colono alemão da família Gripp, morador de Amparo, que o café java difundiu-se na província fluminense. E Amparo sediou um dos primeiros núcleos do espiritismo no Brasil e foi um grande produtor de café e celeiro do Rio de Janeiro e de Niterói, na primeira metade do século XX. Convido o leitor de AVS a acompanhar, nas próximas semanas, a história do distrito de Amparo, que sem sombra de dúvida, é uma das mais interessantes de Nova Friburgo.
Maria Elvira Veloso Serafim nasceu em Duas Barras em 04 de maio de 1915. Aos 96 anos de idade possui 18 netos, 26 bisnetos e 3 tataranetos. Elvirita, como é conhecida, viveu um cotidiano bem diferente de seus bisnetos e passou por diversos períodos de transformações sociais e econômicas em seus quase um século de existência. Seu avô, o português Joaquim Gonçalves Corguinha, veio de Portugal no final do século 19 para Duas Barras e juntamente com o irmão adquiriu uma fazenda na região, dedicando-se à cultura do café. A terra era muito barata naquela época. Casou-se com Augusta Ricardo Corguinha, natural da Ilha da Madeira e tiveram dez filhos. Na fazenda de seu avô Elvirita se recorda dos vestígios da escravidão, um paredão enorme que serviu de senzala. A fazenda foi herdada pelos pais de Elvirita e com o fim da escravidão prevalecia o sistema de colonato. No entanto, os colonos não eram estrangeiros, eram nacionais e da região. Os colonos recebiam uma casa, um “trato de terra”(terreno) e davam a “meia” de sua produção ao proprietário da fazenda. Além de café plantava-se milho, feijão e marmelo, daí o nome de Fazenda do Marmelo. O marmelo era uma fruta muito comercializada pelos portugueses onde se fazia o doce e a marmelada. Já a vara de marmelo servia como instrumento de correção das crianças desobedientes e rebeldes. Não há criança de sua geração que não tomasse vez por outra uma surra com vara de marmelo nas pernas. Porém, essas punições disciplinares não afetaram a relação de amor e respeito entre pais e filhos. Pela manhã e à noite os filhos pediam a benção aos pais. Beijava-se a mão e não o rosto. À noite se faziam as orações. Os casados que moravam perto dos pais, todas as manhãs iam tomar a benção. Às vezes nem entravam. Chegava-se na cozinha, tomava um cafezinho, pediam a benção e iam para sua labuta diária, relembra Elvirita.
Era uma rotina diferença da atual. Levantava-se às 6:00 horas da manhã e se tomava apenas um cafezinho. Às 8:00 horas se almoçava. Jantava-se entre duas e três horas da tarde e às oito horas da noite já estava todo mundo dormindo. Comia-se carne de porco, ovo, galinha, canjiquinha, arroz, feijão, verdura e naquele tempo se usava muito o bacalhau, que era barato. Comia-se bacalhau com chuchu, com quiabo, puro ou com batata. A qualidade do bacalhau era melhor do que de hoje, do tipo 8/10, recorda-se Elvirita. Andava-se 3 km a pé para chegar ao colégio e tinham que carregar ainda os livros de geografia, gramática, aritmética, história do Brasil, ciências e catecismo. Nas horas de lazer se pescava no córrego da fazenda lambari, bagre e moréia. Na adolescência, Elvirita se divertia nos bailes nas casas dos amigos onde a sanfona e violão acompanhava as danças. A festa das folias, no dia de reis, era como o carnaval de hoje. A festa de São João era igualmente muito aguardada onde famílias faziam broa, bolo, doce de mamão, etc. Pulavam-se as fogueiras e dançavam-se quadrilhas. Armavam-se as barracas, cada um levava “um prato” de doces e comiam-se as guloseimas das barracas sem pagar nada. Tomava-se vinho de garrafão e cachaça. Nada era vendido. Havia muita fartura, recorda-se Elvirita. A família de Elvirita mudou-se para Sumidouro e foi em Murinelly que conheceu o seu marido, José Ribeiro Serafim, um lindo rapaz descendente de italianos, e tiveram seis filhos. Havia muitos italianos em Murinelly. José Serafim, além de tropeiro, tinha como atividade comprar matas da região, extrair a madeira e vender a lenha para Cia. Leopoldina. Para o proprietário da mata era um bom negócio, pois além de vender a madeira ficava com a terra livre para a agricultura. José Serafim comprava ainda das “terras quentes” cereais como milho, feijão, café, arroz e açúcar. Colocava as mercadorias em bolsas de couro, as bruacas, e seguia com dois ajudantes e sua tropa de doze animais de Sumidouro para Bonsucesso, Frade, Vieira onde vendia no comércio local. Como a linha do trem não existia nesse caminho, muitos tropeiros permaneceram com suas atividades mesmo depois do “cavalo de ferro”. José Serafim passou também a comprar boi de corte na região e em Minas Gerais e conduzia o gado para o matadouro do Cantelmo, no Campo do Coelho. Com suas economias adquiriu a Fazenda Boavista e deixou a atividade de tropeiro, se sedentarizando. Passou a plantar cana-de-açúcar onde possuía um engenho e a produzir açúcar mascavo. Plantou ainda arroz adquirindo uma máquina de beneficiamento. Até 1950, de acordo com Elvirita, a terra ainda era barata na região e ainda se adotava o sistema de colonato e meação. Quando José Serafim faleceu, Elvirita continuou a administrar as propriedades da família, mas os tempos já estavam mudando. Os antigos colonos, denominados campeiros, foram morrendo, uns se entregavam à bebida e a mão de obra ficava cada vez mais difícil. Elvirita optou, em razão da falta de mão de obra, pela pecuária com a comercialização de leite, pois não se necessitava de muitos campeiros nesse ramo de negócio.
Considerando as memórias de Elvirita desde os tempos de avô, temos mais de cem anos de história, que remontam ao final do século 19. A vida de Elvirita, que aparentemente pode nos parecer banal, revela um interessante ciclo econômico pelo qual passou a região fluminense: o tipo de cultivo da região, a adoção do sistema de colonato e da meação na organização do trabalho, o valor da propriedade fundiária, a persistência do sistema de tropas mesmo depois do advento do trem, e as mudanças da atividade econômica relacionadas com a questão da mão de obra. Pela história pessoal de Elvirita, conhecemos a história local, e daí a importância de suas memórias.
Normalmente se reconhece um apaixonado por sua escola de samba quando se chega, sem marcar hora, para fazer uma entrevista, como foi o meu caso, e encontra o sujeito com a camisa do “Grêmio Recreativo da Vilage”, a verde e branca. Foi assim que encontrei, com a camisa de sua escola, recostado na janela, Luiz Leônidas do Nascimento. Nascido em 1932, morou a vida inteira na Vilage. No passado, recorda-se que próximo à sua casa ficava a chácara do Manoel Rodrigues onde havia plantação de uvas e fabricação de vinho branco. A molecada ajudava na colheita da uva, que dava direito a generosos copos do vinho do Patatinha, como era conhecido o português Manoel. Leônidas tornou-se uma liderança na Vilage, numa época em que havia rixa entre os bairros da cidade. Havia a turma do Centro, da Vila Amélia, do Paissandu e “o pessoal da General Osório era um perigo”, diz Leônidas. Segundo ele, “rolava o sopapo” quando um membro de um bairro entrava no “território” do outro. Mas a turma da Vilage era considerada a melhor de briga. Leônidas transgrediu duas vezes essa fronteira dos bairros: A primeira, quando se apaixonou por Tereza, que morava nas Braunes, casando-se com ela e levando-a para a Vilage. A segunda, foi quando ele juntamente com Estrangeiro, Eliude, Tião e Nelson resolveram participar da “Alunos do Samba”, escola pertencente ao centro da cidade (hoje a escola pertence a Conselheiro Paulino). Ensaiavam na Rua Monsenhor Miranda, freqüentada pelos “filhos do Sr. Doutor”, relata Leônidas. Chegando lá foram expulsos, pois eram considerados “pé de bicho”, ou seja, andavam descalços. Leônidas e seus amigos não tinham dinheiro para comprar sapatos: “Éramos pé de bicho porque dava bicho[de pé] mesmo, não tinha jeito, de vez em quando tinha que tirar um bichinho do pé...”, recorda-se Leônidas.
Inconformados com a expulsão, fundaram a própria escola e foi nesse momento que surgiu o “Grêmio Recreativo Vilage do Samba”, fundado em 23 de setembro de 1948. Para tanto, foram na fábrica de Carbureto(onde hoje é a Frivel) e roubaram latões de carbureto para fazer os surdos. Cortando os latões ao meio fizeram o tarol. O couro de cabrito e de novilho, ideal para os instrumentos, era doado pelo alemão Edmundo Weidlich, do Curtume de Duas Pedras. Confeccionaram os tamborins, os triângulos e somente o agogô foi comprado. O símbolo da águia foi Leônidas quem escolheu, pois gostou da imagem que um amigo trouxe dos Estados Unidos e a cor verde e branca, também partiu dele. Foram campeões no primeiro ano que a Vilage do Samba desfilou, em 1949. Perderam em 1950, mas ganharam em 1951, 1952 e 1953. E a Vilage do Samba desde então sempre se destacou no carnaval da cidade. Vocês marcaram território quando fundaram a Vilage, pergunto? “Não, na Vilage do Samba qualquer um poderia participar”, responde Leônidas. Não fizeram com os outros o que “Alunos do Samba” fez com ele e o seu grupo, excluindo-os. Além dos “Alunos do Samba” havia outras escolas como a “Saudade”, criada seis meses antes da Vilage, e a “Chacrinha”, ambas do Bairro Ypu. Havia ainda a “Unidos do Terreirão”, de Olaria. O Clube de Futebol Esperança era o único clube esportivo que tinha escola de samba, denominada “Unidos Verdejante”.
Com o passar dos anos a estrutura das escolas de samba não alterou muito, afirma Leônidas. Mas no passado, havia a ala das “Pastorinhas”, ala das moças bonitas, com vestidos longos. A escola tinha pouco mais de cem componentes. Nessa época não havia samba-enredo feito pelas escolas. “Não tinha esse negócio da escola fazer o seu samba”, relata Leônidas. Escolhia-se um samba conhecido e se desfilava cantando esse samba. O compositor da escola de samba surgiu apenas em 1955. Eram bons tempos para o carnaval da cidade. As fábricas disputavam quem auxiliava mais as escolas de samba assinando o “Livro de Ouro”. As fábricas “assinavam” mais que o comércio. O governo federal também auxiliava com dinheiro, através da prefeitura, para as escolas de samba. O folião não pagava pela fantasia. Comprava-se as fantasias com o que se arrecadava no “Livro de Ouro”.
Em novembro se começava os preparativos para o desfile das escolas. Hoje é feito com mais antecedência, em julho. Uma diferença do carnaval antigo eram os passistas, que sambavam mesmo. Tinham que dançar conforme o ritmo da música. Leônidas se ressente que hoje em dia o folião somente pula e não se preocupa em dançar com o ritmo do samba. Fazem coreografia apenas. Tereza, sua esposa, interfere e diz que havia preconceito no passado quanto às passistas: “escola de samba não era para filha de família, era para moça que não prestava”. A casa de Leônidas e Tereza transpira hospitalidade. Quando conversei com ambos parece que já os conhecia há muitos anos. Tereza disse orgulhosa que na véspera, quem tomou café em sua casa foi Rogério Faria, dono da STAM. Rogério, como seu pai Francisco Faria, é um mecenas da Vilage do Samba. A diretoria da escola fizera uma homenagem a Leônidas tocando em frente à sua casa. Leônidas sorriu quando pedi para ouvir o samba, pois a maneira com que se refere à sua escola é contagiante. Ouvi o samba e ele me presenteou com o CD autografado. Quando escrevi a matéria revi o enredo da Vilage do Samba que fala dos “Filhos Do Faz De Conta”. Lembrei-me da trajetória de Leônidas. O “pé de bicho”, como foi chamado, entrou no mundo do faz de conta, criou uma escola de samba com bateria de latões de carbureto e hoje, recostado em sua janela, pode tranquilamente dizer da escola que criou: “Hoje o sonho é real/ ganhei a vida, virei carnaval/ boneca sapeca a sambar/ na vila que me faz cantar.”
Crédito: Fotos extraídas do Blog "Vilage do Samba".
Em virtude da catástrofe natural ocorrida em Nova Friburgo na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2011, não houve carnaval no município em respeito às vítimas do sinistro.
O ano era o de 1964. César Lívio(06/01/1943) era estudante secundarista do Colégio Municipal Rui Barbosa do turno noturno. Saindo do trabalho na fábrica Filó se dirigiu ao Colégio Rui Barbosa e como fazia sempre, tomou o mingau que era oferecido aos alunos enquanto esperava no pátio do colégio o início da aula. Mais um dia na rotina de César Lívio entre o trabalho e o colégio. No entanto, aquele não foi um dia de aula qualquer. Foi um dia atípico. Antes mesmo do início das aulas um jeep do exército estacionou em frente ao colégio dele saindo seis soldados. Os militares entraram no colégio e efetuaram a prisão de Humberto El-Jaick, professor da história da instituição. César Lívio nunca esqueceu esse dia. O adorado professor de história trajava um terno branco quando foi preso. Saiu aparentando tranqüilidade e ainda acenou com um adeus aos seus alunos. Nesse dia não houve aula e nem no dia seguinte. Os alunos quiseram incendiar o colégio, que fora uma antiga fábrica de carretéis e ainda guardava muito material no depósito na escola. Porém, o Prof. Coutinho contemporizou com a turba. César Lívio, que fazia parte do Centro Estudantil Rui Barbosa, chegou a ser perseguido pela polícia do exército durante algum tempo. Rondavam sua casa. Teve medo. Eram tempos difíceis.
Humberto El-Jaick, da prisão, escreveu a seguinte carta que foi publicada em A VOZ DA SERRA de 25/26 de abril de 1964. A censura do governo militar ainda não atingira a imprensa: “Polícia Militar. Niterói, 18 de abril de 1964. Minha querida esposa. Lamento o sofrimento que meus inimigos gratuitos estão causando a você e a nossos idolatrados filhos com a injustiça da minha prisão. Se o pensamento revolucionário está consubstanciado nesta frase do atual presidente, sou também um revolucionário, estou no caminho certo, não tenho por que temer nem me penitenciar. Sabe você, sabem nossos filhos e nossos amigos, sabem nossos leais adversários que o meu procedimento político outro não tem sido senão o de lutar democraticamente pela Humanização do homem e pelo desenvolvimento de nossa estremecida Pátria. Sabem todos, e mais que todos Deus é testemunha, que sempre repeli com a mesma veemência todas as formas de extremismo. E se repilo os extremismos é porque sempre coloquei acima de todos os bens humanos o que me parece supremo e inviolável: a LIBERDADE. Não sei ainda porque estou preso. Minha consciência está tranqüila. Minha vida, meu passado e meu presente responderão por mim. O povo de Friburgo que me julgue. Quem tiver alguma prova capaz de me condenar na presente conjuntura, que a apresente às autoridades antes do meu julgamento. É um repto de honra que lanço desta prisão ao povo da minha terra. A despeito das calúnias, das infâmias, das intrigas, de tudo, ainda creio na justiça dos homens. O sofrimento purifica os nossos sentimentos. A injustiça nos torna mais justos e chego mesmo a pensar que todos os homens deveriam sofrer injustiças para aprenderem a ser justos. Aos que me acusam levianamente, as despeitados, aos covardes e aos corruptos que não trepidaram em me afastar de você, dos nossos filhos, dos meus amigos e dos meus alunos, respondo com a minha comiseração pois hão de sentir indignos deles mesmos. Não lhes guardo nenhum ódio nem desejo de vingança.(...)Minha querida esposa ainda não me refis de todo do impacto da injustiça sofrida. Posso, no entanto concatenar minhas idéias e fazer um retrospecto de todas as minhas atividades políticas. Confesso a você que se for condenado pelos crimes de que posso ser acusado, prefiro a condenação porque ainda entendo que é melhor morrer com honra do que viver sem dignidade. Minha vida, toda Friburgo é testemunha, tem sido em favor da educação da infância e das juventudes pobres. Por elas, e aí é que imploro seu perdão e dos nossos filhos, tenho sacrificado o bem estar material de vocês. Nunca lhes pude dar o conforto que merecem mas jamais um de vocês reclamou o meu procedimento em favor dos mais necessitados. Antes, pelo contrário, Você Minha Querida Esposa tem sido o dínamo que me impulsiona nas horas de abatimento e de decepção. Contrária à minha participação na política, mesmo assim, você nunca me deixou sozinho em todos os momentos da minha vida. Beije duas vezes os nossos filhos, por mim e por você. Diga-lhes que qualquer que seja o meu sacrifício em favor deles é pouco pelo muito que os adoro. Lamento ainda uma vez o sofrimento que lhes estou causando. Lamento mas não peço perdão. Perdão é para os que erram. Estou convencido de plena consciência que todas as minhas atitudes têm sido em benefício da Família Brasileira e de nossa inigualável Pátria.(...) estarei mais firme do que nunca para prosseguir na luta pela consolidação de um regime democrático autêntico que possibilite a todos, ricos e pobres, uma vida digna e humana alicerçada nos insuperáveis e imperecíveis ensinamentos de Cristo no Sermão da Montanha. Abraços e beijos. Humberto.”
Humberto El-Jaick
Humberto El-Jaick(1922-1990) foi um dos fundadores e Presidente do Partido Socialista Brasileiro e Deputado Federal pelo PTB de 1963-1967. Durante o golpe militar de 1964 foi preso e cassado, tendo seus direitos políticos suspensos durante dez anos. Fundou o novo PTB juntamente com Leonel Brizola. Essa carta de demonstra o clima tenso pelo qual passava Nova Friburgo, numa onda de denuncismos que derrubou até o prefeito Vanor Moreira, acusado de comunista, e a prisão de todos aqueles que se manifestavam contra o regime militar, que se perguntavam, como Humberto El-Jaick: “Não sei ainda porque estou preso."
Interessante vídeo sobre a Ditadura Militar dividida em 3 partes:
Exaltação e Propaganda da Ditadura Militar feita pela Rede Globo(1975):
Pessoas detidas pela Polícia Militar em uma comunidade no Rio de Janeiro. Governo Leonel Brizola. Na ocasião, o policial alegou ter utilizado corda nos detidos por falta de algemas na instituição.
Os pretos do libambo. Escravos fugitivos conduzidos pelos capitães do mato.
Gilberto Freyre, não obstante a genialidade de sua obra sobre a história do Brasil, adocicou com o açúcar colonial as relações raciais em nosso país, descrevendo um idílico cenário de democracia racial brasileira. Freyre argumentava que a distância social, no Brasil, fora resultado muito mais de diferenças de classe do que de preconceitos de cor ou raça. No entanto, cientistas sociais dos anos 60, a exemplo de Florestan Fernandes, o principal estudioso das relações raciais no Brasil, comprovaram exatamente o contrário, ou seja, que havia em nossa sociedade a exclusão social de pessoas em decorrência de sua cor. Não houvesse o preconceito das elites brancas no Brasil contra a raça negra, Machado de Assis não seria perseguido em toda a sua vida por três pesadelos: seus ataques epiléticos, sua origem modesta e sua cor mulata, três fontes de medo, ansiedade e vergonha. Mas, nos reportemos à Nova Friburgo.
Na virada para o século XX, Nova Friburgo possuía 67% de sua população constituída por brancos e 32% entre negros, mestiços e caboclos. Como resultado da prevalência da raça branca sobre a negra e mestiça, percebe-se nas memórias de alguns friburguenses que nasceram nos primeiros decênios do século XX, um preconceito de raça, provocadas possivelmente pelas idéias eugenistas que tiveram boa recepção no município, a exemplo do que professava o Prof. Júlio Caboclo, que ironicamente tinha um sobrenome que não condizia com suas idéias de superioridade de uma raça sobre a outra. Mas passemos às memórias. Nondas da Cunha Ferreira, agricultor de Mury, nascido em 1929, nos traz um interessante relato: “Eu ouviu falar, mas não posso provar, que a escravidão em Friburgo acabou mais cedo. Os alemães e suíços eram muito racistas e então eles alforriaram os escravos mais cedo para sair da cidade e que fossem para os outros municípios. Eu me lembro de uma época que eu tinha lá os meus 10 anos, eu guardo muito coisa modéstia à parte, e então a fábrica[refere-se às indústrias que se instalaram em Friburgo a partir de 1910] tinha lá os seus mil e poucos operários e tinha uma colourede só. Querendo ou não querendo a maior parte do mundo é racista(...) e ninguém pode tirar essa idéia de ninguém.(...)Sem dúvida nenhuma, hoje as pessoas escondem as coisas, era[no passado] um racismo sem transparência”.
Curiosamente, a Praça do Suspiro, que tinha recebido o nome de Praça 13 de Maio pela Câmara Municipal, em ata da sessão extraordinária de 21 de maio de 1888, em homenagem a extinção da escravidão no Brasil, perdeu esse nome no decorrer dos anos, um fato que merece ser investigado. Uma situação envolvendo a intolerância racial ocorreu com o Esperança Futebol Clube. Esse clube escolhera as cores pretas e brancas. Mas essas cores logo despertaram a ironia e o sarcasmo, pois havia muitos mulatos no time, associando a cor preta e branca à mulatice dos jogadores. A diretoria do clube, incomodada com a gaiatice da população, mudou as cores do time para verde e branca. Ainda com relação às memórias, segundo relatos, havia em Nova Friburgo, na Praça Getúlio Vargas, duas alamedas: em uma alameda passava os ricos e brancos e na outra passava a classe popular e as “pessoas de cor”. Por Outro lado, no “Grito da Mocidade”, um bar próximo a “Casa de Moças Damas”, na subida do cemitério, homens brancos eram proibidos de freqüentar, salvo raras exceções.
No entanto, transcorridos três séculos e meio de escravidão de africanos na história do Brasil, cada um procurou fazer a sua parte e Nova Friburgo assim o fez. O Decreto municipal n°47 de novembro de 1983, institucionalizou o movimento negro e igualmente a sua bandeira. Nesse documento, se reconhece que na história do município, quando os colonos aqui chegaram, já encontraram negros a mourejar na construção dos alicerces sobre os quais se construiria Nova Friburgo. O decreto é afirmativo, declarando que o povo friburguense deseja redimir-se das injustiças praticadas contra os seus irmãos negros no decorrer de sua história. A bandeira do movimento negro é composta de três faixas horizontais, de igual largura, com as seguintes cores e respectivas representações: vermelho, representando o sangue e a vida dos povos negros; o negro, representando a raça negra e finalmente o verde, a esperança de dias melhores e igualmente a natureza, com quem a raça negra sempre soube conviver harmonicamente.
Essa bandeira encontra-se no panteão juntamente com as outras bandeiras dos povos que colonizaram o município. Nova Friburgo redimiu-se, ao menos a nível institucional, de uma injustiça social. Apesar da crítica inicial que fiz a Gilberto Freyre, finalizemos com uma frase sua sobre a cultura nacional: “O Brasil parece que nunca será, como a Argentina, um país quase europeu; nem como o México, ou o Paraguai, quase ameríndio. A substância da cultura africana permanecerá em nós através de toda a nossa formação e consolidação em nação.”
Túmulo de um prussiano morte em um duelo em Nova Friburgo no início do séc.XIX.
Túmulos de civis alemães da Marinha Mercante aprisionados no Sanatório Naval, em Nova Friburgo(RJ), na Primeira Guerra Mundial(1914-18).
Faleceram devido a uma epidemia de tifo em Nova Friburgo.
Lápide de um dos alemães que faleceram de tifo.
AS FOTOS ABAIXO SÃO DO CEMITÉRIO LUTERANO EM NOVA FRIBURGO:
No século XIX, os cemitérios eram considerados pelos médicos higienistas como os responsáveis por diversas doenças, devido ao contato com a terra “corrupta” desses locais. O primeiro cemitério no perímetro da vila de Nova Friburgo localizava-se onde hoje fica o prédio da maçonaria, na Rua Sete de Setembro. Há informação de que numa reforma realizada há alguns anos atrás no prédio da maçonaria, foram encontradas ossadas dos primeiros habitantes da vila. Em 1846, a Câmara resolveu mudar a localização do cemitério da Rua Sete de Setembro. As constantes enchentes que ocorriam no Rio Bengalas inundavam o cemitério fazendo com que alguns corpos emergissem devido a ação água, abrindo sepulturas e provocando grande constrangimento na vila, não bastasse o risco de acarretar doenças. Mas além da situação geográfica do cemitério da Rua Sete de Setembro ser desfavorável, devido as enchentes, urgia ainda a construção de um cemitério maior, “último depósito dos viventes”, tendo em vista que, com o aumento da população, os enterros eram realizados sobre cadáveres ainda “não deteriorados”. Optou-se pelo morro fronteiro à Rua do Senado(atual Alberto Braune), isto é, no local onde o cemitério se encontra atualmente.
Em Nova Friburgo, além do cemitério público, haviam diversos cemitérios particulares espalhados pelas freguesias do município e pelas fazendas nos arredores da vila. Foram muitos os pedidos à Câmara Municipal de licença para se fazer um cemitério protestante nas propriedades de colonos suíços e alemães, devido a longa distância de suas terras nos números coloniais até a vila. Por volta de 1860, Conrado Satler, morador das Cachoeiras de Macahé, confessando a religião cristã evangélica, visto não haver cemitério para seus “correligionários” senão a distância de duas léguas, requer estabelecer um cemitério de sua crença em sua fazenda. Em Nova Friburgo, eram inúmeros os cemitérios: Cemitério da Irmandade do Santísimo Sacramento(o atual), Cemitério de Santo Antonio, na freguesia de São José do Ribeirão, Cemitério dos Números, Cemitério do Alto Macahé, Cemitério de Eggendorn, Cemitério de São José, Cemitério de Lumiar, Cemitério do Córrego Sujo, fora os cemitérios localizados em inúmeras fazendas.
Em 1870, convindo por cobro ao abuso dos cemitérios particulares, o governo provincial recomendou que se proibissem por meio de posturas, os enterramentos fora dos cemitérios públicos ou que as Irmandades autorizassem. Onde eram enterrados os escravos ns vila de Nova Friburgo? Há referência de um cemitério onde os mesmos foram sepultados, o Cemitério do Oratório de Santo Antonio, mas não há indicação de sua localização. Brancos pobres eram igualmente enterrados nesse cemitério. Surpreendentemente, há registro no Livro de Registro de Óbitos na Catedral São João Batista de alguns escravos enterrados no cemitério da Irmandade, uma entidade formada pela elite da época. Um surto de cólera ocorrido em 1865 na Europa e nos Estados Unidos assustou as autoridades do governo imperial. Como disse antes, os cemitérios sempre foram alvos dos médicos higienistas. Recomendou-se à Câmara, entre outras medidas, fiscalizar os cemitérios públicos e particulares, afastando-os quando possível dos centros das povoações. Em 1868, se discutiu sobre a mudança do cemitério da vila para fora do povoado. O governo provincial oferecia aos municípios condições para sua transferência, caso considerassem sua localização prejudicial à salubridade. Quando a Presidência da Província solicitou à Câmara de Nova Friburgo que informasse se convinha a mudança do cemitério da vila, respondeu-se que a transferência era de grande necessidade, visto que o cemitério estava localizado em um morro, tornando-se difícil a condução dos enterros, além de ser “contristador”, por encontrar-se na entrada da vila. No entanto, o que mais preocupava a população era o fato de ser o cemitério um foco de doenças. Segundo ata da Câmara, “estando o cemitério colocado dentro da área da povoação se torna anti-higiênico e, por conseguinte, afetando de algum modo, a salubridade pública...”. Mas nessa ocasião, nada se fez de concreto.
Em 1892, novamente entra em pauta na Câmara Municipal a transferência do cemitério para os arrabaldes da cidade, indicando-se o atual bairro de Duas Pedras. O motivo da remoção era novamente de ordem sanitária, pois já se consolidara o entendimento de uma corrente de higienistas de que a terra dos cemitérios estava impregnada de miasmas morbíficos. Essa mudança não logrou êxito por pressão da própria elite friburguense, mais especificamente por um grupo de notáveis, como o Barão de Duas Barras e Galdino do Vale, que sustentavam que a cidade crescia pelas bandas de Duas Pedras, já havendo muitas habitações no local, conforme noticiava a Gazeta de Friburgo de 20 de outubro de 1895. E assim, o cemitério persiste até hoje no mesmo local. Outrora, havia ainda uma área no cemitério demarcada para o enterro somente de crianças, a “quadra dos anjos”. Cabe por fim destacar que no passado, por ocasião do aniversário da cidade, costumava-se fazer uma peregrinação aos túmulos dos primeiros habitantes da vila, tecendo-lhes preito. O Cemitério Luterano igualmente nos fornece boas fontes históricas. Essa matéria, feita por ocasião do dia de finados, serve apenas para demonstrar que mal nos damos conta de que os cemitérios, além de serem um local onde repousam os nossos mortos, são lugares de MEMÓRIA DA CIDADE.
Carlos Bini é o segundo, em pé, da direita para a esquerda.
A turma do “Galeria-Bar” tinha mesa cativa no bar da Galeria União. Suas estripulias foram lembradas pelo memorialista Carlos Bini, que era uma espécie de líder do grupo, no livro “A Turma do Galeria-Bar”. Era um grupo de rapazes de classe média, que se reunia quase todas as noites no bar da Galeria União. Depois de se inflarem de bebida alcoólica, pois nenhum deles usava drogas, faziam planos para infernizar a vida dos moradores da cidade nas madrugadas frias de Nova Friburgo. Não faziam o estilo da geração beat, a exemplo de Jack Kerouac. Eram brincadeiras inocentes como bater os sinos da igreja para assustar a população ou ainda roubar lingüiça do açougue com uma vara, aguardando a primeira fornada de pão de uma padaria para comerem pão com liguiça. Sua vida sexual era sádico-burlesca. Promoviam “curras”, ou seja, arrumavam uma mulher que servia sexualmente a todo o grupo num mesmo programa. Após o terceiro, vira “baba de quiabo”, mas para “afogar o ganso” e tirar o “atraso” somente dessa maneira, devido “a falta de mulher naquela época, não tinha jeito”, segundo Bini. Eram geralmente “empregadinhas domésticas”, a exemplo da “Nega Rosa”. Sem perceberem, repetiam as mesmas práticas dos senhores de outrora, que subjugavam as escravas, delas servindo-se sexualmente, valendo-se de sua condição de classe. Mas desde que o mundo é mundo sempre haverá os “bad boys”. Na civilização romana, os filhos de senadores saíam noite adentro pelas ruas de Roma, espancando os transeuntes e embriagando-se.
De tropelia a tropelia, os rapazes da turma do Galeria-Bar eram os donos da noite friburguense, pois na segurança pública havia somente a polícia civil, que possuía apenas um jeep wyllis para ronda e poucos soldados, velhos conhecidos da galera. Segundo Bini, “o entrosamento com a comunidade era calmo, pois havia poucos casos de delitos”. As brincadeiras dos rapazes eram vistas como “coisas de juventude”. A turma participava do “Parlamento Estudantil”, que congregava estudantes de segundo grau do município, e de atividades artísticas como teatro, festivais de música e palestras. Nova Friburgo, uma cidade celeiro no campo da educação, com colégios referência no país, a exemplo do Anchieta e do Colégio Nova Friburgo, irradiava eventos culturais entre os estudantes secundaristas. Havia festivais de teatro, cinema, artesanato, shows de poesia e música no Centro de Artes, com a participação dos friburguenses Egberto Gismonti e Benito Paula. Era o tempo da contracultura provocada pela guerra do Vietnã. Nova Friburgo abrigou a primeira comunidade hipppie do país, localizada em Vargem Alta, e ganhou as páginas da imprensa nacional, um interessante episódio que merece uma matéria à parte. Essa experiência gerou o filme “Geração Bendita” sobre a comunidade hippie em Nova Friburgo, que apesar de ser de qualidade duvidosa, colocou Bini em evidência pela originalidade do tema. Bini produziu ainda com seus amigos dois jornais: “Força Jovem” e o “Jornal de Friburgo”, ambos de vida efêmera, devido a falta de condições econômicas. Mas a geração bendita logo se transformou em geração maldita. Geração maldita porque foi uma geração que vivenciou o golpe militar de 1964, onde a repressão e o patrulhamento ideológico interferia em suas atividades cotidianas. A turma do Galeria-Bar trocou as brincadeiras juvenis pela militância política, promovendo pichações nos muros da cidade com a seguinte frase: “ABAIXO A DITADURA MILITAR”.
Em Nova Friburgo cai o prefeito Vanor Tassara Moreira, considerado comunista e entra o seu vice Heródoto Bento de Melo, que segundo Bini era “considerado homem de direita”. Ainda segundo ele, “O Sanatório Naval em Friburgo era aonde iam os suspeitos de serem contra a ditadura. Várias pessoas foram chamadas a depor e explicar a participação nos movimentos políticos na cidade. Nós, nunca fomos chamados, pois eram tomadas como coisas de estudantes sem grande importância”. Bini passou a ter seus filmes censurados e a poesia de um membro do grupo proibida e ele se perguntava: “Por que os comunistas eram tão perigosos em um país?”
De geração bendita, a geração maldita, dos doces anos verdes da juventude aos duros tempos da repressão e da prisão sem culpa. Consequentemente, a turma do Galeria-Bar amadureceu e trocou a tropelias da juventude pela militância política através de jornais, cinema, poesias, etc. Atualmente, alguns membros já faleceram, mas até hoje a galeria do edifício União continua a ser um espaço de sociabilidade masculina da geração antiga. Podemos mensurar a diferença entre a turma do Galeria-Bar e a geração atual, considerada essa última como individualista, através de suas referências. Para a geração de hoje, o ícone pop é o personagem fictício capitão Nascimento, do filme “Tropa da Elite”. A de outrora, o revolucionário Che Guevara. A diferença é significativa.
Matéria baseada no livro “A Turma do Galeria-Bar”, de Carlos Bini. 2001.
Praça que levou o nome do médico Dermebal Barbosa Moreira
Derly Moreira Chaloub nasceu em 1921 e tinha doze anos quando veio residir em Nova Friburgo. Sua família é originária de Conceição de Macabu. Seu pai foi um dos médicos mais cultuados na história de Nova Friburgo: Dr. Dermeval Barbosa Moreira. Falecido em 06 de maio de 1974, aos 74 anos, seu funeral ilustra bem a consideração que gozava junto às classes populares onde concorreram milhares de pessoas. Quando se encontrava na agonia de seus últimos momentos de vida, o povo se aglomerou na Praça Paissandu, em frente ao hospital onde ele se encontrava internado. Sob pressão da população, Derly autorizou, mesmo sofrendo com a agonia de seu pai, que cada popular passasse, um a um, em frente à porta do quarto do Dr. Dermeval para a derradeira despedida. No préstito fúnebre, as enfermeiras foram todas de branco com uma rosa vermelha à mão. Moças jogavam pétalas de rosa sobre o caixão. Muitos até imaginam que Dr. Dermeval exerceu um cargo de vereador ou prefeito no município, mas ele nunca se imiscuiu na política local. Foi o último daquela cepa de médicos que misturava a profissão com o sacerdócio, pois tinha um local e horário para atender gratuitamente aos pobres, uma prática muito comum entre os médicos até o primeiro quartel do século XX. Daí a sua popularidade e ser considerado o “pai dos pobres”.
Poucos sabem, mas quem construiu o prédio que abriga a UERJ foi o Dr. Dermeval juntamente com o seu cunhado, edificando no local, conhecido por Cascata, o Hotel Cassino. No entanto, como o jogo foi proibido no governo Dutra, o prédio virou um elefante branco. Dr. Dermeval então negociou com médicos tisiologistas do Rio de Janeiro para abrigar no Hotel Cassino mais um sanatório para tuberculosos na cidade. Augusto Spinelli, que era vereador, mobilizou a população contra essa venda, posto que Nova Friburgo iria se transformar em uma “cidade sanatório”. Encetou-se então negociações com a Fundação Getúlio Vargas e o prédio acabou virando um estabelecimento de ensino.
Derly Chaloub não tem boas recordações da política. Seu irmão Vanor foi deposto no regime militar acusado de ser comunista. Recorda-se de uma noite em que a diretora da telefônica, que gostava muito do Dr. Dermeval, foi a sua residência e relatou que ouvira uma ligação de uma pessoa importante do gabinete do Dr. Vanor ligar para a Marinha, no Rio de Janeiro, acusando o seu irmão de comunista. Foi ela quem recebeu a denúncia. Era tarde da noite, e não quis incomodar seu pai, mas no dia seguinte, narrou-lhe o fato. Dr. Dermeval foi juntamente com o seu filho, o então prefeito Vanor, ao Sanatório Naval para esclarecerem os fatos e aquela denúncia. Mas as denúncias continuaram e seu irmão perdeu o mandato de prefeito manu militaris.
Quando perguntada sobre a vida social no passado, Derly respondeu que a população de Friburgo era fria como o clima, e que antigamente não acontecia quase nada. Mas quando nos fala de seus anos dourados, percebemos que não era bem assim. Além dos bailes que freqüentava amiúde no Hotel Cassino(já esse hotel era localizado onde é hoje o Edifício União) e do Xadrezinho, Derly participava de uma orquestra de acordeão da cidade. As sessões de cinema e os passeios na praça eram inesquecíveis. Havia um trem que vinha de Porto Novo e passava às nove horas da noite pela praça. Era chamado de “vassourinha”, isso porque quando ele passava, todas as moças “decentes” tinham que ir para casa. Derly ri quando se recorda dos tipos de rua engraçados da cidade: o “Olímpio Errado”, que colocava a frente da calça para trás e o povo gritava: “Olímpio Errado”; ou ainda do “Chandoca” que tocava banjo, muitas vezes, à noite, debaixo de sua janela.
No cinema Leal, antigo Teatro D. Eugênia, com a chegada do verão e das férias escolares, Derly e as Zamith, Braunes, Dutra, Carneiro e Carrapatoso promoviam apresentações teatrais. Ensaiavam umas quatro peças por temporada sob a direção Moacir Peixoto, que era de Friburgo. Os turistas gostavam muito dessas apresentações, “era muito caprichado”, recorda-se. Peixoto trazia do Rio de Janeiro o cenário e o figurino. O grupo participava do concurso de teatro amador no Ginástico Português, no Rio de Janeiro e se apresentava ainda no Teatro Municipal de Niterói. É interessante como desde o final do século XIX, a elite carioca e friburguense tinham no teatro amador, uma de suas formas de sociabilidade. Não se denominavam atrizes, mas “amadoras”. Havia ainda uma orquestra na cidade, orientada por Sérvio Lago, de uma família de músicos, e Derly também tocava na orquestra como pianista. Os músicos também participavam das apresentações teatrais. Em suas memórias, Derly Moreira Chaloub relembra a dor pela perda de muitos familiares queridos. Mas em contrapartida, o sorriso e a alegria no semblante quando se recordou da sua juventude e dos tipos mais ordinários e divertidos do cotidiano da cidade: o Olímpio Errado e o Chandoca.
Texto baseado nas memórias de Derly Moreira Chaloub, entrevistada em 2010.
Nascida na Alemanha em 23 de janeiro de 1918, Brigitte Schlupp veio para Brasil no início da década de vinte. Sua família se instalou inicialmente na Bahia, mas logo se mudaram para o Rio de Janeiro. Da Bahia se recorda de uma história que a mãe lhe contara. Certa feita, sua mãe a mandou ir à rua para comprar pão. Tinha aproximadamente cinco anos de idade. Uma mulher negra lhe pegou pela mão e a conduziu à sua casa, advertindo sua mãe: “Não se pode deixar uma menina branca ir sozinha na rua. Isso não é costume”.
Viveu sua adolescência no Rio de Janeiro, casando-se em 1937 com um pastor luterano, o pastor Schlupp, como era conhecido, e foi morar em Nova Friburgo. Nos seus dezenove anos, Brigitte Schlupp se encantou com a cidade e se sentia muito familiarizada devido a presença de muitos alemães no município. A língua era um fator de unidade entre os alemães. Nas memórias de Brigitte os brasileiros foram muito pacientes. Ouviam os alemães falarem entre si na sua língua pátria em sua presença e não se importavam. Não se sentiam ofendidos por não entenderam o que falavam, recorda-se. Hoje isso seria um gesto de falta de educação, destaca Brigitte. Como os alemães falavam em seu próprio idioma com freqüência, açougueiros e quitandeiros se adaptaram e já falavam alguma coisa em alemão com seus fregueses. Brigitte praticava muito esporte como natação, tênis e ciclismo e chegou a escalar o Pico das Agulhas Negras com seu pai. Os alemães praticavam muitos esportes, se recorda. No dia-a-dia os alemães da primeira geração comiam apenas pratos de seu torrão natal. Brigitte somente comia arroz, feijão e angu na casa dos vizinhos. Mas quando criou seus filhos, já os alimentava nos moldes da típica cozinha brasileira. Só para recordar, os principais industriais e executivos das indústrias em Nova Friburgo àquela época eram alemães, logo, Brigitte convivia com a elite econômica local. Seu marido, o pastor Schlupp, adquiriu em 1949 o Colégio Cêfel, que pertencera anteriormente à Cooperativa Educacional Friburguense Evangélica Ltda., fundada pelo pastor presbiteriano, rev. Trasilbo Filgueiras e posteriormente administrada por professores metodistas ligados à Associação Cristã de Moços (ACM). Este mesmo colégio se tornou um dos maiores estabelecimentos educacionais da cidade, reconhecido pela qualidade de seu ensino.
Mas nem tudo são flores. Veio a Segunda Guerra Mundial(1939-45) e pode-se afirmar que os alemães foram muito hostilizados em Nova Friburgo. Muitos alemães foram presos, inclusive seu marido, entre os anos de 1942 e 1943 e conduzidos a uma penitenciária em Niterói, onde ficaram detidos por três meses. Alguns foram enviados para a Ilha Grande. A Igreja Luterana foi fechada e até mesmo o cemitério dos alemães. Todo alemão para se deslocar de um município a outro deveria apresentar um salvo-conduto expedido pelo delegado de polícia. Há um fato pitoresco ocorrido nessa ocasião. Uma alemã foi presa em Araruama por um motivo bizarro. Faltou luz em sua residência, que ficava próxima à costa do mar e como não havia luz ela acendeu uma vela. Foi presa por suspeita de estar dando sinal a um submarino alemão.
Brigitte se recorda do Teatro D. Eugênia e dos passeios nas alamedas da Praça Getúlio Vargas. Segundo ela, de um lado da alameda circulavam os ricos e na outra as classes populares. Recorda-se que antes das seis horas da manhã, despertava com o som de toc-toc-toc-toc-toc e lá vinham os operários com seus tamancos dirigindo-se às inúmeras fábricas da cidade: “As fábricas apitavam e os tamancos iam para a fábrica.” Depois vieram as bicicletas. Os industriais financiaram esse veículo para os operários. Quando perguntada sobre a tuberculose, lembra-se que haviam muitos tuberculosos e, por isso, não se podia tomar um cafezinho nos bares da cidade. A senhora tinha medo dos tuberculosos, pergunto? “Eu não, todo mundo tinha medo. E muitas vezes houve brigas porque o pessoal lá do Sanatório (Naval) fugia à noite para fazer farra aqui na cidade. Isso era conhecido.....”
Finalmente, o festejado trem que está sempre na memória dos mais antigos. Brigitte ia para a estação de trem ver os veranistas chegarem, uma mania entre os friburguenses. Você conhece a piada do trem, me pergunta? Fiquei na dúvida se era a do “trem atual” ou não. Mas a piada era a do século passado. “O pessoal de fora perguntava. Porque nascem tantas crianças em Friburgo? Ah, isso é claro. O trem passa às dez horas [da noite] batendo o sino, pim pim pim, o pessoal acorda, não consegue mais dormir e então...”. O que mais surpreende é que Brigitte, aos 92 anos de idade, nos fala dos acontecimentos do passado de Nova Friburgo com tanta desenvoltura, incluindo até os sons da cidade, como se fosse notícia de “ontem”. Conversando com Brigitte Schlupp mal nos damos conta que ocorreram há setenta anos atrás.
Yolanda Brugnolo Lívio Barilari Bizi Cavalieri d´Oro é descendente de imigrantes italianos que vieram para Friburgo, no final do século XIX. Conheceremos a vida de sua avó Anita, para entender um pouco do cotidiano destes italianos em Friburgo, na década de 20, do século XX. Anita foi uma guerreira. Viúva aos 24 anos, com três filhos pequenos, Carmem, Elisa e Dante e um na barriga, que morreu ainda bebê, conseguiu vencer todas as dificuldades e criar seus filhos sozinha. O italiano Bonaventura, marido de Anita, tinha uma loja de calçados e gostava muito de beber Chianti e jogar bocha com os patrícios, os amigos italianos Mastrangelo, Perna, Piloto e Caputo. No entanto, em visita a um amigo no Rio de Janeiro, doente com febre amarela, contraiu a doença e faleceu prematuramente. Anita, uma das mulheres mais bonitas da época, loura e pele de alabastro, não quis casar-se outra vez, apesar de não lhe faltar pretendentes. Anita “encostou na máquina de costura” e com esforço organizou um atelier, contratando costureiras e conquistando uma clientela sofisticada. Recorda-se Yolanda que “a Nova Friburgo daquela época era muito sofisticada. A colonização suíça e alemã, a vinda de veranistas franceses, e mesmo aristocratas do Rio de Janeiro, trazia hábitos finos, gostos cultivados. Vovó Anita era uma mulher pobre, mas de fina educação, adquirida nas casas requintadas que freqüentava, primeira como costureira, logo como amiga.”
Anita abrigou em sua casa muitas sobrinhas para livrá-las dos rudes trabalhos da lavoura e igualmente as educou. Todas tinham que trabalhar, sem tugir nem mugir. Aprenderam muito e lhe são gratas mesmo quando recordam a ligeireza da mão da velha Anita, quando distribuía corretivos. Aos poucos, alguns italianos foram se mudando para Friburgo, deixando o trabalho do campo. Yolanda se recorda do delicioso almoço de ovo frito com polenta e mortadela, feitos no fogão de lenha crepitante, em casa de seus parentes italianos. Lembra-se ainda, da época em que inauguraram em Friburgo a Casa d’Itália, onde ouvia palestras sobre Dante, Sanzio, Cellini, Leonardo da Vinci e bem assim dos bailes do Club Dopo Lavoro. Numa parte do salão, a moçada sambava e fazia cordões, enquanto que no outro, a “italianada velha”, os Mastrangelo, Caputo, Perna, Massa e Bianchini, dançavam alegremente a tarantela.
Como havia muitos tuberculosos na cidade, sua avó Anita abriu uma pensão para atender a estes doentes que vinham se curar em Friburgo. Bom negócio e clientela certa, pois chegavam frequentemente centenas de tuberculosos a cada ano em Friburgo, pois o clima lhes era favorável à cura. Anita possuía uma série de cuidados especiais com seus hóspedes doentes e segurava as bacias para as hemoptises dos tísicos, todos muitos “fracos de peito”. Yolanda se recorda de sua avó dando ao doente uma gema crua numa colher de sopa para criar cor, seguida de um cálice de vinho do Porto ou um escalda pés capaz de afugentar qualquer resfriado teimoso. Chegava o domingo, dia da sacrossanta macarronada. Desde cedinho, sua avó mesmo pronta para a missa, usava um avental de algodão alvejado para preparar a massa de trigo e ovos. Enquanto Anita ia a missa, a massa ficava esticada na mesa, secando, e o delicioso molho apurando no fogão de lenha. A pasta era servida numa travessa de porcelana, acompanhada por uma dourada carne assada, cortada em fatias com batatas em sua volta.
Finalmente, se recorda de sua avó vigiando-a pela janela, enquanto brincava na rua, pois “quem toma conta, dá conta”. Yolanda, na sua velhice, se surpreendia consigo mesma cantando velhas cantigas italianas e em suas memórias, disse que parecia ainda sentir o cheiro dos rapapés, pudins, bolos, queijos, biscoitinhos de polvilho, licores de jabuticaba e vinhos de laranja, tudo feito pelas mãos mágicas de sua avó Anita.
Fonte: Baseado nas memórias de Yolanda Brugnolo Lívio Barilari Bizi Cavalieri d´Oro(1922-2007)
Brevemente, a Câmara Municipal de Nova Friburgo irá homenagear Laura Milheiro de Freitas, dando-lhe o nome de sua tribuna. Muitos desconhecem sua história em Friburgo e vale a pena recordar sua trajetória na vida pública. Nascida em 13 de abril de 1913 e filha de uma numerosa família de imigrantes portugueses, Laura Milheiro é carioca de nascimento. Veio para Friburgo em 1942, quando tinha 29 anos acompanhando seu marido, Augusto Souza Freitas, oficial da Marinha, transferido para o Sanatório Naval. Como seu marido padecia de uma doença crônica dos pulmões, o clima de Friburgo lhe foi recomendado por médicos à época, ocasionando sua transferência para aquele estabelecimento. O fato de ter apenas uma filha, Lídia Milheiro de Freitas Chaves, deu a Laura Milheiro tempo suficiente para se dedicar às ações sociais, atividade que já realizava desde o Rio de Janeiro, quando auxiliava sua mãe. Nos últimos anos de sua vida, as definições sobre a militante política Laura Milheiro são um verdadeiro paradoxo: de doce e terna “Tia Laura”, como era conhecida pelas classes populares, a “dama de ferro”, assim descrita por correligionários e adversários políticos. Mas como iniciou sua trajetória política?
Tudo começou quando o médico da Marinha, Dr. Silva Araújo, amigo da família, atendia às pessoas pobres a seu pedido, gratuitamente, quando Laura já se dedicava às ações sociais em Friburgo. Dr. Silva Araújo se candidatou ao cargo de vereador e como sempre atendia “aos seus doentinhos pobres”, Laura se sentiu na obrigação de trabalhar para ele em sua campanha. Foi eleito e quando terminou seu mandato incentivou-a a se candidatar, pois como vereadora teria mais instrumento para suas ações sociais. Como por trás de uma grande mulher existe um grande companheiro, foi incentivada por seu marido e assim entrou para a política, tendo uma carreira meteórica. Foi vereadora por quatro mandatos, presidente da Câmara, sendo a primeira mulher a exercer o cargo de vereador no Estado do Rio. Assumiu ainda a função de prefeita durante 40 dias, em substituição a Amâncio Mário Azevedo, que viajara para a Alemanha.
De acordo com as memórias de sua neta, Ana Luiza Milheiro, Laura Milheiro via na função pública uma atividade em que não poderia haver ganhos pessoais. Recusou do então governador Roberto Silveira um cartório e deixou de se candidatar ao cargo de vereador quando a função passou a ser remunerada. Discordava que um vereador tivesse vencimentos. Desde que a Câmara Municipal foi instituída em Friburgo, em 1820, os vereadores não recebiam salários. Davam a sua contribuição pessoal a administração da cidade, sem possuir ordenados, sendo eleitos em razão da notória capacidade em suas atividades privadas.
Laura Milheiro foi uma daquelas mulheres que estava além de seu tempo. Enquanto na sua geração, as mulheres de classe média, eram “do Lar”, cuidando da casa, dos filhos e servindo ao marido, Laura foi uma militante política. Mas não havia preconceito àquela época? Certamente que sim, mas Laura superou esta questão. Segundo as memórias de sua neta, como sua avó era uma mulher muito bonita, as esposas dos correligionários sentiam muito ciúme dela. Astuta, Laura visitava as casas destes políticos, fazia amizade com suas esposas e assim angariou a simpatias das ciumentas, revertendo o quadro. Quando os maridos diziam que iam a reunião política, perguntavam se Dona Laura estaria presente, pois se ela estivesse, é sinal de que havia de fato reunião e não uma desculpa para suas “saidinhas”. No campo das ações sociais fundou o Serviço de Assistência Social Evangélica(SASE), o núcleo da Legião da Boa vontade (LBV) em Friburgo, o Abrigo Betel para idosos e menores desamparados, o Instituto de Assistência de Proteção aos Cegos e a Casa das Meninas do Abrigo Amor a Jesus. Foi ainda presidente do Serviço de Proteção, Educação e Ajustamento da Criança(SPEAC) e presidente da Comissão Municipal da Legião Brasileira de Assistência(LBA), fora os postos de saúde que trazia para as comunidades carentes. É exaustivo enumerar as diversas funções que Laura Milheiro exerceu na vida pública. Mesmo contando com o apoio de diversas pessoas na criação destas instituições, Laura Milheiro era de fato a timoneira destes projetos, já que assistência social sempre fora a sua missão. Já no executivo municipal, exerceu funções públicas no governo de Amâncio de Azevedo, Alencar Barroso, Paulo Azevedo e Nelci da Silva. Pertencia aos quadros da comissão executiva do PTB, depois do MDB, futuramente PMDB, sendo que até o final de sua vida, mesmo afastada das funções públicas, foi sempre procurada por políticos que lhe pediam aconselhamento. Não havia candidato que não passasse pelo “beija mão” de Laura Milheiro. No plano estadual participou do Movimento Popular de Alfabetização (MPA) no governo Roberto Silveira(PTB), onde tinha bastante trânsito e simpatias do governador, pois fizera aguerrida campanha em 1958, pela sua eleição. Laura Milheiro passou a ter a partir de então grande poder político e liderança na região, pedindo nada menos ao governador Roberto Silveira que transformasse Friburgo em capital do Estado do Rio. Ao que parece, o governo chegou sinalizar esta possibilidade: “...Senhor Governador, o povo vê hoje a concretização de um sonho que acalentava há anos, Friburgo tornar-se a capital do Estado...”. De fato, no final do século XIX, Friburgo disputou com Petrópolis e Campos o lugar de capital do Estado, mas Petrópolis acabou ganhando, se tornando capital, ainda que por um período efêmero.
Laura, como membro do PTB, sempre tecia preito a figura de Getúlio Vargas, que segundo ela, era um missionário. Pessoa muito religiosa, misturava sempre em seus discursos política com religião, como foi o caso de colocar os ideais da Revolução Francesa nas palavras de Jesus: “...Fazia-se mister o desmoronamento das castas nobres opressoras, para que a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade pregadas por Jesus pudessem entrar no mundo”. Militante, iniciava sua correspondência com a frase: “Saudações Trabalhistas!”. Em sua correspondência com o governado Badger da Silveira, em agosto de 1963, Laura Milheiro se mostra como uma mulher ousada desafiando um delegado de polícia, onde fez campanha pela sua exoneração. Naquela época os delegados eram nomeados pelo governador. Acusou-o de conivência com marginais e de explorar a jogatina e o lenocínio na cidade. Em todos os ofícios, a assinatura de Laura era sempre a primeira.
Laura Milheiro se envolvia em tudo. Capacitação de mulheres operárias, tornando-as assim “ajudadora no lar”, amparo a maternidade, a infância, aos desvalidos e enfermos. Percebe-se sua preocupação sempre com a periferia da cidade e a zona rural. Somente mais de meio século depois que Laura Milheiro ingressou na vida pública é que vão surgir em Friburgo as primeiras mulheres candidatas aos cargos de vereador e prefeito, o que demonstra o seu vanguardismo à época. Chegou a ser candidata a prefeita, porém não logrou êxito, e seu santinho dizia: “um coração a serviço do povo, eficiência comprovada, realizações indiscutíveis”. Sua neta Ana Luiza se recorda que ela se sentia decepcionada com a política nos últimos anos de sua vida, tendo falecido em 22 de fevereiro de 2007. Não era para menos. A política mudou muito, os partidos se tornaram legendas de aluguel e como Laura Milheiro sempre manteve uma coerência política, uma ideologia linear, não poderia mesmo se adaptar aos novos ventos e práticas políticas.
Laura tinha como sua grande referência na política a figura de Getúlio Vargas e se sentia legatária e responsável em cumprir à risca o que Getúlio deixara em sua carta testamento quando de seu suicídio. A Câmara foi muito feliz em indicar o nome de Laura Milheiro para sua tribuna. A oratória sempre foi a sua característica mais marcante. Por isso, deixo o leitor com a íntegra do seu discurso quando da inauguração da estátua de Getúlio Vargas, outrora Praça 15 de Novembro, para conhecermos melhor o pensamento político de uma mulher cuja personalidade é cambiante da doce “Tia Laura” a aguerrida “dama de ferro”.
Exmo.Sr. Almirante Amaral Peixoto; Exmo. Sr. deputado Salo Branol, representante do Exmo. Sr. governador; Sr. deputado Dante Laginestra; Exmo. Sr. Prefeito e Vice-prefeito e demais autoridades presentes; meus senhores e minhas senhoras:
Com os olhos marejados de lágrimas pela saudade, venho de público trazer a minha singela cooperação a esta tocante cerimônia, onde estamos prestando o nosso preito de gratidão, pelo muito que recebemos do grande e inesquecível vulto do insigne brasileiro que foi o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não me era possível silenciar, pois como vereadora do Partido Trabalhista Brasileiro(...) é com lágrimas nos olhos e o coração ferido pelo desaparecimento prematuro do defensor do direito do pobre e do desprotegido da sorte, para quem reservou os últimos pensamentos e a quem tanto ainda desejava ajudar, que hoje prestamos esta homenagem póstuma, pois de vindo fora, receberia as mais vivas demonstrações de reconhecimento e gratidão dos verdadeiros getulistas deste grande Brasil, estivesse ele onde estivesse.
Só quem sem paixão, com o coração sereno, contempla a obra deste grande estadista, pode ver o quanto fez pela nossa querida pátria, dando-lhe a melhor da lei trabalhista.
Ao ver a situação aflitiva do trabalhador, debatendo-se este com a miséria no lar, quando a enfermidade batia à sua porta, vivam os trabalhadores na mais completa desorganização, sem um objetivo, sem um ideal. Faltava-lhes a necessária compensação e com ela o desejo de progredir. Quantas vezes o operário cumpria o seu dever sob as agruras da fome, sentindo no trabalho, a ressoar aos ouvidos as lamentações dos filhos famintos que ficaram no lar sem conforto, e da esposa a solicitar-lhe o necessário para a sobrevivência dos seus. Os seus filhos eram criados como seres irracionais, sentindo desde os primeiros instantes de vida as privações do lar proletário.
Nos dias de hoje, as reivindicações dos trabalhadores encontram acolhida e são estudadas pelos órgãos competentes do Ministério do Trabalho. O sempre lembrado presidente Vargas é hoje o ídolo do operário nacional, porque organizou o trabalho, criou a justiça, deu valor ao trabalhador e sobretudo disciplinou as classes, dando-lhes participação na ordem política e administrativa do país, conferindo-lhes assim o gozo de viver com ideal.
Muito poderia falar enumerando todos os empreendimentos do grande presidente, em prol dos operários e trabalhadores em geral. As gerações futuras, provindas dos trabalhadores do Brasil, hão de ser gratas ao destino que em boa hora fez surgir na vida pública a personalidade de Getúlio Vargas. E o Brasil lhe será credor de tão sublimes empreendimentos. Há dez anos passados, já escrevia o escritor patrício, Mozart da Gama: “O Brasil, grande entre os maiores, há de ter perpetuada em bronze, para conhecimento das gerações futuras, o vulto de um filho que o conduziu a glória e ao esplendor.” A profecia cumpriu-se em nossa cidade, ao ser inaugurado hoje este belo monumento.
Getúlio Vargas, os brasileiros que comungam dos mesmos ideais pelos quais sempre lutastes, continuarão a obra que iniciaste, e aqui, junto a tua pessoa, perpetuada neste bronze, renovarão os propósitos de continuar a obra que não te deixaram realizar, de tornar a nossa querida Pátria amada e respeitada por todos nós.
(Discurso proferido em 19 de abril de 1955, por ocasião da inauguração da estátua de Getúlio Vargas, na praça que lhe deu o nome, por Laura Milheiro Freitas)
Fonte: Acervo particular de Ana Luiza Milheiro de Freitas.
Sobre o Vídeo: Carta-Testamento de Getúlio Vargas. Segunda-feira, dia 24 de agosto, dia dramático. em que Getúlio Vargas, com um tiro no próprio coração, deteve o golpe de direita que estava em marcha e que, afinal, viria dez anos depois. A conspiração golpista, liderada pela UDN, sem poder atacar Getúlio, construiu sobre seus auxiliares e familiares a história de um mar de lama.
O atentado que matou o major Rubens Vaz, segurança de Carlos Lacerda, desencadeou uma ação arbitrária de setor militares ligados à direita que subverteram a investigação legal do incidente e a transformaram num atrabiliário inquérito que ficou conhecido como a República do Galeão.
Getúlio jamais obstaculizou qualquer investigação. Aos 72 anos, cercado de auxiliares vacilantes e com fraco apoio militar, sabia que já não teria como resistir aos golpistas pela via política.
Usou, então, uma arma mutio mais potente que o pequeno revólver Smith &Wesson, calibre 32, do qual partiu a bala que feriu de mortalmente seu coração. Usou a própria morte como arma da democracia e saiu da vida para entrar na história.
Sua Carta-Testamento, talvez o mais marcante documento da História do Brasil, é famosa, mas pouco conhecida. Fui achar o áudio de uma leitura dela não aqui, no Brasil, mas nas fonotecas de duas universidades, uma de Caracas, na Venezuela, e outra de Santo Domingo, na república Dominicana.
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