UM FLÂNEUR EM FRIBURGO..........

Foto acima: João do Rio

FLANANDO
Na grande luta em que sempre nos vemos empenhados, em busca do elemento principal à nossa existência o assumpto, parecemos muitas vezes um afogado que apega-se a tudo, comtanto que venha à tona.
Immerso em uma monotonia profunda, mais profunda talvez que os pélagos inaccessíveis, procuro em vão um galinho myrrhado mesmo, com que possa por momentos fluctuar, lanço olhares pata todos os lados e nada vejo.
Espersos sobre a meza, apenas jornaes, assumpto nenhum; abro ao acaso o órgão da heroína de 9 de Fevereiro, O Fluminense que os leitores conhecem certamente.
Logo na primeira columna as Dominicaes do Azamor, effectadas do mesmo mal que eu sinto agora [refere-se a falta de assunto] e tanto assim que no segundo período elle arranja um burro que quebra as grades do jardim Pinto Lima com uma lança.
Depois vem o bode expiatório da sua falta de assumpto, a Cantareira que paga pelo pato que nem sempre come.....
Flaneur. (O Friburguense, coluna “Flanando”, 02/07/1896)



Vitor Hugo escreveu em os Miseráveis: “L’ erreur est humain; lê flâneur est parisien”. Para alguns autores, o flaneur é apenas uma glosa literária, um tipo ideal muito lógico encontrado mais no discurso do que na vida cotidiana. No entanto, há registros de que diversos homens da elite do século XIX, assumiram o pathos do flâneur, tipo social que recebeu apologia na obra de Baudelaire. O poeta mergulhou nas ruas de Paris, em busca de experiências que pudessem ser agregadas à sua poesia. Alguns articulistas em Friburgo, no século XIX, influenciados por sua obra, também se aventuraram nas ruas da incipiente urbs para extrair inspiração à sua coluna.


O desenvolvimento da imprensa contribuiu para que a escrita sobre a cidade se afirmasse: o texto rápido que narra o desenrolar da vida no dia-a-dia é moda que ganha as páginas dos jornais, inaugurando a reportagem. Dickens, Balzac, Hugo, Dostoievski, Gogol, Zola, entre outros, foram exemplos de escritores que ansiando por desvendar a alma humana, compreenderam que deveriam debruçar-se sobre o bulício das ruas. O flâneur foi um tipo citado por diversos autores, desde o início do século XIX. No entanto, foi na obra que Baudelaire que ele mais se evidenciou. Baudelaire foi o flâneur do século XIX. Ele louva o artista que mergulha na multidão, recolhe impressões, e as joga no papel assim que regressa ao seu studio. O surgimento de espaços públicos de prazer e lazer criou uma figura pública com disposição para vagar, observar e folhear as cenas de rua: o flâneur – elemento central na literatura crítica da modernidade e da urbanização. Na literatura, ele foi descrito como observador arquétipo da esfera pública, nas grandes cidades européias, do século XIX.




FLANANDO
Tenho philosofado um pouco, sobre essas cousas de Friburgo e seriamente uma me impressiona e deixa-me as vezes um pouco receioso do futuro d´esta nossa poética e encantadora cidade
Tudo vae muito bem, dirão os leitores.
Sim é o que parece, respondo-lhes eu.
Dir-me-hão que não tenho razão, mas eu provo e deixo-os todos ahi com côr de água quente, e um sorrizosinho amarello nos lábios.
É questão de dia menos dia, nos temos grandes acontecimentos; os factos vão se accumulando e em breve alguma causa de extraordinário surgirá, provocando um basbaque geral.
Cogito, prescruto, ouço, observo, vejo uma desordem, uma anarchia geral por baixo da capa pezada d´esse silencio que nos envolve, d´essa paz que mos illude....
Flaneur (O Friburguense, coluna “Flanando”, 16/07/1896)

O articulista Souza Cardoso de O Friburguense criou a coluna “Pif-Paf” onde “lia” a cidade, admirava sua paisagem, observava seus costumes, relatava seu cotidiano e descrevia seus tipos sociais. Como o flâneur, percorria as ruas do centro de Friburgo de onde retirava a matéria-prima do seu ofício. A seguir, dirigia-se para a redação do periódico transformando suas “leituras da rua” em crônicas. Alguns anos depois, assumiria a sua flanerie e mudaria o nome da coluna “Pif-Paf” denominando-a “Flanando”. Na realidade, o articulista encarnava uma mistura do dandi inglês, quando se tratava da indumentária, com a personificação do flâneur francês, ambos personagens emblemáticos do século XIX. Como o Baudelaire, Souza Cardoso usou a máscara, a farsa, o anonimato, assinando a coluna como “Pof-Puf” para viver novas experiências e ter mais liberdade, fugindo à seriedade dos editoriais que escrevia. Na qualidade de flâneur percorria as ruas narrando os acontecimentos como leitor do social, já que era o cotidiano que prendia sua atenção.

FLANANDO
Bello céo de Friburgo! Se é dia, o azul do firmamento tem um colorido(...)se é noite, o negro de suas trevas, destaca a luz de myriade de estrellas que scintillam dobrada claridade(...)confesso: gosto mais da noite(...)por isso, gosto mais da noite, negra como a aza da graúna, porque os astros vivem e scintillam dobrada claridade, e eu posso então contenplal-os espandindo a minha phantasia que se perde em mil cogitações sobre os corpos sideraes...
Felizmente, não sou o único e assim ao menos, pensa commigo a municipalidade, tanto que a illuminação é conservada somente até certa hora porque o material que ella fornece não dá luz senão até pouco depois da meia-noite.
No fim tudo fica em trevas e a gente póde melhor contemplar os astros.
Toma-se uma estrella por guia para não errar a casa, á outra a gente reza, para não levar uma facada, nem quebrar uma perna na vala...
Flaneur (O Friburguense, coluna “Flanando”, 19/07/1896)

Evidentemente, faltavam em Friburgo a multidão e a metrópole, habitat do flâneur e matérias-primas do poeta francês, já que as pequenas cidades não ofereciam o mesmo espaço que as grandes, para os passeios e a observação. Mas isto não inibiu o articulista em encarnar o personagem incorporando este tipo em suas colunas. O cronista João do Rio também usou este artefato em suas crônicas sobre o Rio de Janeiro.

Flanar! Aí está o verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco,...É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.

O flâneur é ingênuo quase sempre(...)e conhecendo cada rua cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos(quase sempre mal), acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo;....E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na pela sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia a alma das ruas(...)Eu fui um pouco este tipo complexo, e talvez, por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel... (Extraído do livro "João do Rio")
No cabeçalho da coluna “Pif-Paf”, havia o desenho de um cavalheiro elegante, pince-nez à mão, numa representação simbólica do tipo físico do flâneur. Logo, foi através da riqueza deste olhar sobre a cidade, inspirado em Baudelaire que foi possível reconstruir o cotidiano de Friburgo, no livro de minha autoria: O Cotidiano de Nova Friburgo no final do século XIX.

FLANANDO
Charuto de tostão ao queixo, gingando um andar com passos de urubú malandro, chapéu á três pancadas, meio inclinado á esquerda, lá vou eu no meu passeio habitual...
Em frente á pharmacia do Raspatini, vi o Matta encostado aos umbraes conversando com um eleitor...
O homem falava mansinho, com voz meio chorosa, apontava para as botas rotas, alisava as faces com uma das mãos, emquanto a outra saccudia a góla do coronel...Não sou curioso, mas confesso, procurei entender o que conversavam; nada pude apanhar e tão attento estava que distrahi-me e esqueci-me que andava na rua.
De repente um choque enorme despertou-me; saltei de um lado, espantado suppondo ter sido colhido por uma das machinas da Leopoldina...(trema dele)
Fora engano...havia esbarrado em um homem que vinha também distrahido...quase arrebentando o Gafanhoto da Restinga...
Perdão!...Cavalheiro...e apertei o passo para não comprar barulho.
E elle, lá ficou a procurar o pince-nez, tendo apenas murmurado:
Oh!...não enxerga!
Pouco adiante encontrei-me com o Almeidinha; vinha deitando quatorze milhas por hora, isso é o que se póde chamar um juiz de paz transatlântico, isto é com marcha de transatlântico.
Sim Senhores....vamos ter uma autoridade ativa...e, já não é sem tempo.....
Ainda bem não me havia despedido do Almeidinha, ouvi uma voz symphatica, cheia de uma bondade que todos proclamam dizer:
Que é dos meus sello seu tratante...
Voltei-me, era um moço moreno, de pince-nez, paletot sacco e guarda-chuva verde e branco.
Philatellista enrangé é o maior enthusiasta do olho de boi.
Entreguei-lhe uns sellos velhos que trazia no bolso, conversamos um pouco e depois fui para o Suspiro
Tudo vasio!...silencio sepulchral!...
Somente a fonte cantava saudosa o velho poema do amor, da saudade do ciúme...
Nem um sabiá...nem uma pomba!...tudo deserto...voltei para casa desconsolado...
Flaneur (O Friburguense, coluna “Flanando”, 09/07/1896)



Observação: os textos foram transcritos do jornal como no orginal.

1 Response to "UM FLÂNEUR EM FRIBURGO.........."

rwolf k disse...

Parabéns pela excelente postagem. Admiro muito a idéia de flâneur, e não imaginava que chegara até Friburgo. Saber que aqui já se teve conhecimento sobre tal assunto, me felicita em demasia! Todos deveriam ter conhecimento sobre essas histórias, e poder admirar mais nossa cidade.



Novamente deixo aqui minhas prolfaças, pelo maravilhoso blog.
Boas descobertas e desbravações !

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