A Fisiologia da Cidade: Tipos Friburguenses no Século 19

A “fisiologia” foi um gênero literário que surgiu na França na primeira metade do século XIX, sendo denominada “literatura panorâmica”. Nesse tipo de texto, singelos cadernos em tamanho de bolso – que eram chamados de physiologies – assumiram um lugar de destaque. Buscavam tipos como aqueles que são encontrados por alguém que dá uma volta pelo mercado. Desde o camelô até os elegantões do foyer da ópera, não havia nenhuma figura da vida parisiense que o physiologue não tivesse desenhado. Após ter-se dedicado aos tipos humanos, a série chegou à fisiologia da cidade. Aparecem Paris la nuit, Paris à table, Paris dans l’eau, Paris à cheval, Paris pittoresque, Paris marié. O objetivo das fisiologias era dar uma imagem alegre e cordial das pessoas entre si (Benjamin, 1985, p. 65).

Certamente, os jornalistas em Friburgo conheciam esse tipo de literatura. Foi editado por algum physiologue friburguense Typos de Friburgo, um elegante livrinho no qual eram descritas as pessoas mais conhecidas da sociedade, no registro de O Friburguense de 22 de setembro de 1898. Numa sociedade que era uma verdadeira “torre de Babel”, compreendendo portugueses, italianos, espanhóis, franceses, turcos, descendentes de suíços e os nativos, desfilavam por Friburgo variados tipos sociais, personagens ilustres e alegóricos do cotidiano da cidade. A coluna denominada “Typos de Friburgo”, assinada por um certo “Língua de Palmo”, inventariou interessantes descrições de figuras ilustres, entre políticos, médicos, negociantes e capitalistas. Essa coluna nos legou, através do encômio de alguns desses tipos, uma noção do que eram as qualidades do homem oitocentista. Ao se analisar esses “tipos”, observa-se que havia elementos que se repetiam na definição de cada um dos descritos. Uma característica que era vista como uma qualidade e que se manifestava em quase todos eles era a eloqüência, a palestra atraente, o aticismo, a verve, a aptidão para a oratória, a qualidade de um causeur, atributos muito apreciados em um homem naquela época. A modéstia, sem dela fazer gala, vinha também a reboque como uma qualidade do homem oitocentista. Se fosse bom palestrante e ainda por cima modesto, diversos louvores eram tecidos sobre o indivíduo, comungando essas duas qualidades numa simbiose perfeita. Além da oratória, a escrita também era valorizada, principalmente dos que se aventuravam na literatura, como era comum em Friburgo, em particular os advogados.

A erudição e as sentenças clássicas eram ainda muito apreciadas. Logo, a estirpe intelectual era destacada, fosse ela decorrente do conhecimento literário ou filosófico, das artes dramáticas, da ópera, do lírico ou da música. A elegância e o porte eram características também muito destacadas, sendo o tipo dândi o mais reverenciado, cuja indumentária era descrita com detalhes, de forma quase pedagógica, para dar mostras aos pupilos do que era ser um homem elegante e seguir-lhe o modelo. O fumo de charutos era um hábito apreciado por quase todos. O fato de ser um indivíduo trabalhador também era destacado, principalmente quando eram homens de sucesso, numa analogia entre labor e fortuna. Quanto ao aspecto sedutor, alguns eram reverenciados não somente por sua beleza, considerados enfant gaté, como ainda por sua qualidade natural de conquistador que gozava das simpatias das damas da cidade. Eram esportistas, amantes de caminhadas, cavalgadas ou equitação, caça e pesca. A voga dos esportes e dos exercícios físicos combinava com os modelos higienistas da época. Souza Cardoso foi um dos tipos descritos pelos fisiologistas:

(…) É poeta e redactor d’O Friburguense (…) seo jornal é bem feito,
noticioso, litterario, symphatico e no gênero representa um verdadeiro tour de force, de perseverança e abnegação (…) sua política é a da prosperidade desta terra a que muito presa. O typo phisico é atrahente, sente-lhe nas longas barbas brancas a bondade e a paz de patriarcha feliz. O Friburguense é seu filho mais novo, o seu querido Benjamim a quem elle prodigalisa thesouros de ternuras e prosa que não parece velho pelo geito e pela graça (…).

Alguns desses tipos foi possível identificar, mas a seleção a seguir, extraída de diversos números de O Friburguense de 1896, serve para exemplificar o que era objeto de gabo da sociedade friburguense:

1) É popularíssimo em Friburgo. Passo lento e bambo de philosofo nostálgico(…). É um repositório inesgotavel de erudição, de sentenças clássicas, de ironia acerada e brilhante. Tem a nobreza de uma illustre estirpe intellectual. É advogado(…).

2) É barão. Estatura fina e delgada de canário belga.
Madrugador, jovial, percorre Friburgo n’um abrir e fechar d’olhos, passo rápido, nervoso, vestes largas e simples. Tem um repertorio vasto de pilherias conhecidas e inéditas, applica-as com um jeito fidalgo e ferino, roda sobre os calcanhares acuvo, afreimado(…). É amador da musica, assobia Arias, canta duettos, faz variações por flauta, discute a Paixão, enthusiasma-se como um rapaz, deita dircurso (…).

3) Traja irreprehensivelmente. Maneiras fidalgas de uma distincção notável, linguagem fácil, luxuosa, incisiva. Discute tudo, psychologia, briga de gallos, com o mesmo primor de forma, com a mesma belleza e elevação (…). É um prazer delicioso ouvil-o em momentos de humorismo hilariante ou de pessimismo paradoxal(…).

4) É engenheiro e já foi vice-presidente deste Estado. Sympathico, despreoccupado, sua palestra é uma bella orchestração de ditos corroscantes, de conceitos originaes e justos, envolvidos na púrpura de uma imaginação, opulenta, meridional (…). (Getúlio das Neves.)

5)Advogado e philosofo. Contemplativo, absorto, passa horas e horas a scismar em doenças, a construir castelos de pílulas (…).

6) É tabelião(…). Veio para Friburgo como um palito, com o pulmão fraco, versos lipicos e prosa romântica; hoje é um bom burguez, meticuloso e exacto no cumprimento dos seus deveres.

7) Entre os typos sumpathicos de Friburgo cabe-lhe lugar no primeiro plano. É medico e deputado. Medico distincto, caritativo, dispensa com maior desinteresse á todos os cuidados da profissão que converteu em verdadeiro sacerdócio, a confiança e sympathia que inspira aos doentes faz com que cure muitas vezes sem receituário; deputado, a sua política é tolerante e melíflua, seus conselhos são vincados de alto prestigio moral, pela respeitabilidade do seu caracter, pelo bello cultivo de seu espírito. Os adversários, os mais intransigentes prestam-lhe os devidos respeitos e amisades pelo trato gentil e cavalheiroso, pela nobreza e franqueza do seu modo de agir determinado e seguro, mas sempre digno e correcto. Nessa cidade que elle estremece todos lhe são affeiçoados e muitos conhecem os thesouros da sua alma amantíssima e caridosa (…). (Ernesto Brazílio.)

8) É major reformado da velha-guarda tem condecorações que muito o distinguem (…). É monarchista convencido e acredita estar com a verdade(…).

9) Em sua pátria, a bella pátria de Garibaldi, foi militar valoroso e digno (…). A sua vocação porém, é a pharmacopéa (…). Seus extractos fluidos são incomparáveis, seus preparados chimicos fasem milagres, reconstituem organismos gastos, ressuscitam defuntos (…).(Raspatini.)

10) É coronel honorário, propagandista da guarda nacional (…). Vigia com cuidado que ninguém lhe tome o posto (…). Em eleição é mestre, somma bem, em sua arithmethica eleitoral 4 e 4 fazem dose o que o não
impede, entretanto, de ser cavalheiro gentil e estimável.(Coronel Zamith.)

11) É poeta e bacharel em sciencias jurídicas. Que tenha algum dia um
escriptorio com laca á porta e que seja capaz de ler e arrasoar (…). Entre a teoria de Lombroso ou de Tarde, elle se inclinará de preferência para um soneto de Baudellaire, para uma estrophe de Verlaine, se a rabulice forense perder com esta preterição exultará a sublime arte que elle amorosamente trata e cultiva.
Phisico elancé, toilette a Broummel, palestra adorável, fazem delle um typo de selecção a quem a diplomacia offerece as suas graças e o scenario brilhante de seus triunphos. Tem sido infeliz em certas partidas, as mulheres não entendem a extesia caprichosa do seu temperamento mas sentem a volubidade dos seus (…) cantares.

12) (…) na redação do jornal faz tudo; o artigo de fundo, a chronica humorística, a noticia, com a mesma correcção e com o mesmo critério
(…). A critica theatral do Friburguense é um primor. Sente-se que são escriptas por quem conhece as “chevilles” do palco, os segredos da “mise-en-scène”, por quem em outros tempos foi amador dramático (…). Hoje é guarda-livros (…). Tem um gesto favorito: cofia a barba, uma barba digna à Duque de Guise (…). (Francisco Pinto de Almeida.)


13) (…) é o agente consular da colonia italiana desta cidade (…). Quando não exerce dos difíceis misteres de sua missão patriótica no terreno da diplomacia e da política, vende vinhos italianos (…).
Quando não vende vinhos fecha a porta, põe a espingarda ao hombro, enche o cachimbo de tabaco, um cachimbo do tamanho do Diabo, uma botelha de chiante, abala para o mato à caça e quase sempre mata o bicho-chiante. Quando não vai à caça toma os caniços, a tarrafa, põe mais tabaco no cachimbo e vae pescar lambarys nos afluentes do rio Bengala onde pesca infalivelmente uma garrafa de Falerno. Quando não vai à pesca fica em casa engarrafando vinho, enchendo a cada momento o cachimbo e discorrendo sobre as caçadas, grandes caçadas em que há
sempre salsichas, paios, mortadellas e frascos de chiante. (Maggiorino Massa.)

14) É advogado e lavrador. Convenceu-se de que nesta terra a melhor
cousa que um homem intelligente póde fazer é plantar café, cana, batatas, etc. (…). Foi deputado do Estado (…). Entretanto outr’ora, “ça va sans dire”, foi amador de operetas, horisontaes e de ceias “a lá diable”. Hoje mudou completamente, fez-se bom burguez (…) é um excellente rapaz, jovial (…), de maneiras insinuantes, de palestra agradabilíssima pela cultura litteraria, pela espontaneidade da verve, uma verve faiscante e rubra. De quando em vez, transparece n’elle o antigo bohemio, mas bohemio a Murger, de espírito faceto e coração generoso.

15) É uma das figuras obrigadas do Friburguense. Faz a revisão, a noticia, a paginação do jornal, o seu querido jornal (…). É um bonito moço, elegante, correcto e sympathico, d’ahi o prestigio que gosa entre o eterno feminino que elle presa e se orgulha de possuir as sympathias (…). (Augusto Cardoso.)


16) É italiano (…) filho da cidade de Salermo (…). Começou a mascatear, mas só em roupas, artigo que entende bem (…). Hoje é importante negociante de seccos e molhados, trabalhando sempre, mas sabe viver bem, mora em uma das melhores casas dessa cidade (…). (Giovanni Giffoni.)


17) É de Nictheroy onde foi liberal extremado e é proprietário de um bom estabelecimento de seccos e molhados (…). Proporciona todos os dias agradáveis reuniões nas portas de seu estabelecimento onde concorre o “high life” masculino, impondo-lhes a obrigação de tomarem assento em duras cadeiras. Assiste a essas reuniões onde é proihibido tratar da vida alheia, cedendo sempre a presidência a algum dos concurrentes (…).


18) (…) é distincto engenheiro; na câmara dá sentenças. Traja bem, calça bem talhada, colete elegante e palitó de gola de veludo. Mòra em casa pequena, mas mobiliada com arte e gosto; os moveis representam antiguidade de fidalgo. É bem jovial e tem espírito, conta anedoctas que faz lembrar o primo Bazílio. Propagandista da luz electrica (…). Vae sempre a capital assistir as primeiras representaçõese quando volta faz descripções que muito deleitam os ouvintes (…). (Joseph Lynch.)


O periódico O Beija-Flor também retratava os tipos da cidade numa coluna intitulada “Typos e Typões”, mas com um formato diferenciado que objetivava elaborar uma espécie de charada sobre o perfil de quem se descrevia:

TYPOS E TYPÕES
I
Profissão: Desde o fumo,
passando pela polícia até a Câmara.
Particularidade: Cultiva verde para
colher maduro.
Endereço Postal: No quartinho secreto, dos fundos.
Divisa: Ser chefe dos tribudos “guaranys”.
II
Profissão: Não disputa
o boticão, orador popular e membro de commissões
de bailes e manifestações.
Particularidade: Tudo pela classe.
Endereço Postal: Centro.
Divisa:
O operário é o baluarte das grandes nações.
(O Beija-Flor, de 6-10-1895.)

TYPOS E TYPÕES
Profissão: Accusar por dever.
Particularidade: Fallar pouco, quando deve ser ao contrario.
Endereço Postal: órgão (…).
Divisa: Para olhos que ferem há attenuantes.
(O Beija-Flor, de 13-10-1895.)

TYPOS E TYPÕES
Profissão: Administrador
effectivo e coronel honorário.
Particularidade: Repórter por natureza.
Endereço Postal: Mona (…).
Divisa: Quem não quiser ser lobo não lhe
vista a pelle.
(O Beija-Flor, de 27-10-1895.)

Quanto ao perfil feminino, foi retratado usando-se a personagem de um artista que com a sua palheta pintava os perfis das elegantes senhoras e damas da cidade. “Silhouettes” era uma pequena coluna publicada em francês, em O Friburguense, no período de 26 de abril a 31 de maio de 1896. Segundo o periódico, quando se retratavam tão nobres e elegantes friburguenses, somente o idioma de Racine poderia retratar a donaire, a elegância da elite citadina. O porte, as boas maneiras, o garbo, o bom gosto, todas essas qualidades foram pintadas pela palheta e assinadas por C. Fróes e J. Cardoso, esse último provavelmente o articulista Sousa Cardoso:
Blonde.
Elle a um joli visage de deésse de l’ancienne Mythologie.
Elle posséde une élégance exquise, un physique alancé et vaporeux, une grace de parisienne commen faut. Ses toilettes sont toujours chics, toujours à soi même.

Elle a des yeux bleus profonds, des yeux oú les petits symboles de
l’amour dansent comme dans une pagode indienne.
Elle a une beauté pleine de séduction, de genre de beauté qui tourmente les hommes et fait naitre en eux l’amour. Elle est brune.

Elle a les cheveux noirs, les yeur noirs, un noir
illuminé et doux. Materiellement, elle n’est pas belle.
Elle a dans le visage une expression de doucer delicieuse.
Lá reside le secret de son charme.
Elle este pâle.
Quand elle reprend les couleurs de la santé, il
me semble que ce n’est plus elle.
Quando elle rit, de son rire éternel, je ne puis me
defendre d’une vague mouvement d’hostilité et presque de colére contre son rire. Elle est l’image monote du rire.
(O Friburguense, vários números,
de 1896.).

As mulheres também não foram esquecidas pelo periódico O Beija-Flor:

PERFIS
Eu cá no número próximo
Começarei publicando
O perfil airoso
e brando
Das bellas moças de cá;
Darei o perfil das pallidas,
E das
morenas tão cheias
De bellesa, só as feias
Não terão perfil, olá!
Myosotis.
(O Beija-Flor, de 6-10-1895.)

Apesar de não descritos pelo fisiologista, também compunham o elenco de figuras conhecidas alguns personagens das classes populares. Entre elas os “tipos de rua”, que faziam parte do cotidiano da cidade, sendo geralmente indivíduos negros, loucos, alcoólatras e provavelmente
egressos da escravidão: "(…) É a consagração indispensavel que prepara o trimpho immortal dos typos de rua, que os faz tão intimamente ligados a uma phase da vida colletiva, a existência de uma sociedade num determinado período histórico". (O Friburguense, “A Perua”, de 12-7-1896.)

O poder constituído, em Nova Friburgo, costumava despachar os negros e crioulos alcoólatras para o hospital de alienados em Niterói e os velhos indigentes para o asilo de mendicidade na capital federal. O delegado de polícia detinha, inicialmente, esses indivíduos na cadeia e aguardava a autorização do chefe de polícia do estado para realizar o traslado. Apesar de muitos terem sido despachados da cidade, alguns resistiram e passaram a fazer parte da paisagem e do cotidiano de Friburgo. Pequenos furtos ou ainda agressões cometidos por essas personagens eram tolerados pelas autoridades locais. Segundo Magali Gouveia Engel (2003, p. 63), no começo do século XX, personagens cujas trajetórias de vida se desenrolavam nas fronteiras entre a loucura, a embriaguez, a mendicância e a vadiagem conseguiram preservar as vivências e convivências proporcionadas pela liberdade das ruas.

Freqüentemente, os negros eram objetos das brincadeiras e escárnio por parte da população. Havia em Friburgo o “tenente maluco”, que, do meio-dia em diante, ameaçava quebrar a “cuia” de quem passasse por ele. Já o negro “Roão”, quando estava “na chuva”, ou seja, bêbado, despejava um turbilhão de palavrões.147 O articulista queixava-se: “Ou elle ensaboie a lingua ou raspe-se do logar.” “Tiny” era a alcunha de uma célebre crioula de nome Joaquina de Jesus, que costumava roubar roupas e frutos dos quintais, levando sempre uma advertência do delegado de polícia. Já a preta Leopoldina, que atacava geralmente crianças na estrada, ferindo-as, era mais temida e levava bons sopapos e cachações do delegado, quando detida. Uma outra mulher preta que dizia chamar-se Margarida, e que o vulgo mudoulhe o nome para “Coruja”, servia de joguete da molecagem. Por ela não concordar com essa mudança de nome, uma torrente de palavras que, segundo O Friburguense, “a moral repugna reproduzir” era proferida, aumentando ainda mais a gaiatice da rapaziada. “Não haverá quem ponha cobro a isso?”, cobravam os mais moralistas no editorial de O Friburguense de 25 outubro de 1891.
Como disse, os tipos populares eram quase sempre mulheres e homens negros, provavelmente loucos em razão das sevícias da escravidão, cuja extinção era ainda recente.
É significativo que os negros sempre tivessem alcunha, como o preto Vicente da Silva Barros, vulgo “Roão”, e que, por mais que lutassem para adquirir uma identidade, com nome e sobrenome, acabavam sempre sendo reconhecidos por seus apelidos (O Friburguense,
de 31-5-1891.)

A preta Margarida, ou “Perua”, como era conhecida, nome dado pela molecada, era o tipo mais popular da cidade. “Perua” já não se irritava mais com a alcunha que lhe haviam dado e passava requebrando o corpo, envolto em um xale, e arrastando os chinelos. De luneta acavalada sobre o nariz adunco, lápis e papel nas mãos rascunhando caracteres ininteligíveis e bramindo alto, pintava a saracura, numa[ fúria de histeria inofensiva, com terríveis predições apocalípticas. Na estação ou na porta da igreja, a molecada gritava: “Perua! Perua!” Era o grito constante e, por onde ela aparecesse, formava-se logo uma roda. Havia os que a admiravam, os que a provocavam para rir de seus arremessos à garotada e aqueles curiosos em ouvir suas previsões e imprecações de desgraças para o futuro. “Perua” era vista arrastando-se, beijando e chorando o lajedo dos adros da Igreja-Matriz. Nesse momento, comovia os transeuntes mais piedosos, na sublime e dolorosa austeridade da sua religião de histérica. Após a penitência, seguia sob um coro de gestos e apupos, já fazendo parte do cotidiano da cidade a flânerie da jovem preta Margarida. No rosto, sempre a expressão alucinante, ouvindo revelações da outra vida, tão inofensiva na sua demência, tão desgraçada na sua vesânia. Heranças da escravidão.


Fonte: Extraído do livro "O Cotidiano de Nova Friburgo no final do século 19> Práticas e Representação Social".

O COTIDIANO DO RIO DE JANEIRO NO SÉCULO 19: TIPOS CARIOCAS.






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