MINHA VIDA MÁGICA - Memórias

Acima Yolanda, já idosa, e seu marido Bonaventura no plano maior

“Acho que todas as pessoas deveriam escrever a história de suas vidas. Não para publicar, é óbvio, que isto é para os sábios, artistas, heróis....mesmo porque, quem é que iria se interessar pela obscura vida desta humilde filha de Deus que se chama Yolanda Brugnolo Lívio Barilari Bizi Cavalieri d´Oro?” Este pensamento de Yolanda, de que somente os grandes acontecimentos históricos, a exemplo de guerras e revoluções e os grandes personagens destes acontecimentos é que mereceriam destaque na história, não existe mais. Desde que os franceses fundaram a Escola de Annales, novos “atores” e objetos passaram a ser de interesse da história, entrando em cena o cidadão comum.

Yolanda nasceu em 1922, em Nova Friburgo, vindo a falecer em 2007. Descendente de imigrantes italianos que vieram para Friburgo no final do século XIX, escreveu uma deliciosa história de sua vida, cuja infância foi passada em Friburgo até seus oito anos de idade. Seu pai era caixeiro viajante, filho dos imigrantes Pedro Bizi Cavalieri d´Oro e Eugenia Barilari Cavalieri d´Oro, oriundos da aldeia de Commachio, província de Ferrara, na região Emília Romagna. Vieram para o Brasil já casados e com filhos. “Descendemos de família de italianos pobres, que vieram para o Brasil em fins do século XIX, por ocasião da grande imigração decorrente do alastramento da cultura cafeeira”, relata Yolanda. Pelo lado materno, vindos de Padova, região Veneto, vieram Marco Brugnolo e Catarina Brugnolo com seus três filhos. Um destes filhos seria Antonia, conhecida por Anita, que seria sua avó, casando-se com o também imigrante italiano Bonaventura Lívio. Sua avó Anita marcaria muito a sua infância.

A família de Yolanda, de um modo geral, não era como a de hoje classificada como “família orgânica”, consistindo de pai, mãe e filhos. Em sua casa e a de seus avós, povoam afilhados, primos, sobrinhos e uma parentela que troca de domicílio entre si, além dos criados que passam a fazer parte da família. Lembra uma típica família do tempo colonial e que parece ter sido ainda uma característica do início do século XX. Quem não tinha um sobrinho que deixava a casa de seus pais na roça e ia morar com a madrinha na cidade? No entanto, os homens não faziam o tipo paterfamilias, senhor autoritário da casa, pois as mulheres, ao menos estas imigrantes italianas, mandavam e muito. Yolanda tinha duas irmãs, Zaíra e Lúcia, e Ninita, esta última uma parenta que morava com ela e ajudou na sua criação. A condição social de sua família era de remediados, como se dizia à época, o que seria hoje uma classe média, já que moravam numa casa própria e tinham lazeres modestos. Residiam na Rua General Câmara, atual Augusto Spinelli, rua iluminada pelas lâmpadas fraquinhas dos magros postes da época. Não havia calçamento e sapos cruzavam para lá e para cá, além de cobrinhas que volta e meia se enrolavam nas pernas das crianças.

Toda a descrição de Yolanda será a de uma Nova Friburgo na década de vinte, do século XX, durante a infância dela. E como era Nova Friburgo naquela época? O frio intenso entra muito nas memórias de Yolanda, pois, segundo ela, “as florestas eram densas, os regatos abundantes(...)Eu ensaboava roupinhas de boneca e as punha ao sereno; amanhecia durinhas de gelo, o que me encantava(...). Recordo Ninita e Mamãe nos dando banho numa bacia, dentro do quarto fechado e depois passando o ferro quente nos lençóis das caminhas para que pudéssemos dormir.” Era uma Nova Friburgo em que as casas tinham vastos quintais, onde todos cultivavam legumes e verduras em pequenas hortas, a exemplo de couves e cenouras, além de um pomar com jabuticabeiras e laranjeiras carregadas de frutos dourados e as casas divididas por cercas de bambu.

Pouco mais de quarenta anos depois de extinta a escravidão(1888), suas memórias nos mostra como ficou a situação de ex-escravos e seus descendentes em Nova Friburgo. Sua infância é povoada de empregadas e crianças negras em sua residência, todos lembrados com muito carinho a exemplo dos “pretinhos” Lidia, Cidália e Simplício, tão difíceis de esquecer. Numa convivência doméstica e amistosa, nos remete a obra de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, das mães pretas e negrinhos convivendo harmoniosamente com os senhores da casa.
Yolanda tinha quatro anos quando Felizmina veio trabalhar em sua casa. Era uma “crioula gorda”, de uns quinze anos, inteligente e muito tímida. Sua avó e sua mãe já haviam sido empregadas de sua casa, e a tinham trazido para que a mãe de Yolanda a ensinasse a trabalhar. Felizmina ficou na família por 27 anos. “Ajudou a nos criar, participando de nossa vida mais como amiga do que como empregada”, recorda-se Yolanda. Já sua avó Anita, racista, segundo ela, reclamava que a cozinha da casa de Yolanda parecia uma senzala, sempre cheia de negros. “E era verdade. Mamãe acolhia-os, ajudava-os, ensinava-os a ler, a viver. Também, nunca precisou fazer trabalhos pesados, sempre havia alguma negra adorando trabalhar para ela, verdureiros[negros] perguntando se D. Carmen queria “rapoio”(repolho), vizinhos mais pobres ajudando nas tachadas de goiabada ou no fabricação do polvilho(...)Era Mamãe quem escolhia os feitios dos vestidos natalinos das pretinhas e as ajudava nas tarefas escolares”. Yolanda se recorda dos roletes de sorvete, ancestral do picolé, apregoados por moleques negrinhos com suas caixas de madeira com gelo, empregados de algumas senhoras da cidade. A avó Anita tinha uma empregada que a acompanhava há anos de nome D. Fortunada. Era uma velhinha preta, nascida escrava, que “executava suas ordens sem pensar em discutir”.

Uma interessante herança da escravidão era um castigo ao qual denominavam à época de pelourinho. Quando se fazia alguma “arte”, havia uma cadeira especial para o castigo, o pelourinho, que ficava disposta no quarto. A criança ficava lá até que o castigo cessasse. No entanto, não havia violência física contra as crianças, diferente da prática do pelourinho que castigava os escravos com açoites e outros tipos de sevícias.

No tocante a moral da época, como o pai de Yolanda era caixeiro-viajante e ficava muitos dias fora de casa, sua mamãe achava que não deveria sair, pois poderia “ficar falada”. Certo dia, uma garota da vizinhança disse a Yolanda que era sua prima, filha de seu tio. Indignada, chamou-a de mentirosa, pois seu tio era casado, tinha família e morava no Rio de Janeiro. Quando contou à sua mãe o ocorrido, ela lhe disse para não tocar mais naquele assunto. Adultério e situações que chocavam a moral da época eram tratados nas alcovas. No ouvir dizer, Yolanda recorda-se das histórias dos “conquistadores de capa preta”, figuras importantes da sociedade, segundo ela, que saíam à noite, “embuçados como dominós”, para visitar suas amantes. No início do século XX, muitos casamentos, e me refiro aos das classes abastadas, ainda eram realizados na base das convenções sociais.

Acima o pomar de peras da Vila Amélia, hoje delegacia de polícia.

O casamento por amor, prevalecendo a vontade dos noivos em escolher seus parceiros, ainda dava seus primeiros passos, principalmente entre a elite, onde os jovens eram ainda objeto de “arranjos” matrimoniais entre seus familiares. Daí ser comum que muitos homens buscassem parceiras fora do casamento, já que suas consortes não foram objeto de sua escolha. Em relação ao homem que deixasse a amante e vivesse só para a família, dizia-se que ele “calçou os chinelos”.


Baseada no livro de memórias, "Minha Viva Mágica", de Yolanda Brugnolo Lívio Barilari Bizi Cavalieri d´Oro.




















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