Laura Milheiro: Uma personalidade cambiante entre a doce Tia Laura e aguerrida Dama de Ferro




Brevemente, a Câmara Municipal de Nova Friburgo irá homenagear Laura Milheiro de Freitas, dando-lhe o nome de sua tribuna. Muitos desconhecem sua história em Friburgo e vale a pena recordar sua trajetória na vida pública. Nascida em 13 de abril de 1913 e filha de uma numerosa família de imigrantes portugueses, Laura Milheiro é carioca de nascimento. Veio para Friburgo em 1942, quando tinha 29 anos acompanhando seu marido, Augusto Souza Freitas, oficial da Marinha, transferido para o Sanatório Naval. Como seu marido padecia de uma doença crônica dos pulmões, o clima de Friburgo lhe foi recomendado por médicos à época, ocasionando sua transferência para aquele estabelecimento. O fato de ter apenas uma filha, Lídia Milheiro de Freitas Chaves, deu a Laura Milheiro tempo suficiente para se dedicar às ações sociais, atividade que já realizava desde o Rio de Janeiro, quando auxiliava sua mãe. Nos últimos anos de sua vida, as definições sobre a militante política Laura Milheiro são um verdadeiro paradoxo: de doce e terna “Tia Laura”, como era conhecida pelas classes populares, a “dama de ferro”, assim descrita por correligionários e adversários políticos. Mas como iniciou sua trajetória política?

Tudo começou quando o médico da Marinha, Dr. Silva Araújo, amigo da família, atendia às pessoas pobres a seu pedido, gratuitamente, quando Laura já se dedicava às ações sociais em Friburgo. Dr. Silva Araújo se candidatou ao cargo de vereador e como sempre atendia “aos seus doentinhos pobres”, Laura se sentiu na obrigação de trabalhar para ele em sua campanha. Foi eleito e quando terminou seu mandato incentivou-a a se candidatar, pois como vereadora teria mais instrumento para suas ações sociais. Como por trás de uma grande mulher existe um grande companheiro, foi incentivada por seu marido e assim entrou para a política, tendo uma carreira meteórica. Foi vereadora por quatro mandatos, presidente da Câmara, sendo a primeira mulher a exercer o cargo de vereador no Estado do Rio. Assumiu ainda a função de prefeita durante 40 dias, em substituição a Amâncio Mário Azevedo, que viajara para a Alemanha.

De acordo com as memórias de sua neta, Ana Luiza Milheiro, Laura Milheiro via na função pública uma atividade em que não poderia haver ganhos pessoais. Recusou do então governador Roberto Silveira um cartório e deixou de se candidatar ao cargo de vereador quando a função passou a ser remunerada. Discordava que um vereador tivesse vencimentos. Desde que a Câmara Municipal foi instituída em Friburgo, em 1820, os vereadores não recebiam salários. Davam a sua contribuição pessoal a administração da cidade, sem possuir ordenados, sendo eleitos em razão da notória capacidade em suas atividades privadas.

Laura Milheiro foi uma daquelas mulheres que estava além de seu tempo. Enquanto na sua geração, as mulheres de classe média, eram “do Lar”, cuidando da casa, dos filhos e servindo ao marido, Laura foi uma militante política. Mas não havia preconceito àquela época? Certamente que sim, mas Laura superou esta questão. Segundo as memórias de sua neta, como sua avó era uma mulher muito bonita, as esposas dos correligionários sentiam muito ciúme dela. Astuta, Laura visitava as casas destes políticos, fazia amizade com suas esposas e assim angariou a simpatias das ciumentas, revertendo o quadro. Quando os maridos diziam que iam a reunião política, perguntavam se Dona Laura estaria presente, pois se ela estivesse, é sinal de que havia de fato reunião e não uma desculpa para suas “saidinhas”.
No campo das ações sociais fundou o Serviço de Assistência Social Evangélica(SASE), o núcleo da Legião da Boa vontade (LBV) em Friburgo, o Abrigo Betel para idosos e menores desamparados, o Instituto de Assistência de Proteção aos Cegos e a Casa das Meninas do Abrigo Amor a Jesus. Foi ainda presidente do Serviço de Proteção, Educação e Ajustamento da Criança(SPEAC) e presidente da Comissão Municipal da Legião Brasileira de Assistência(LBA), fora os postos de saúde que trazia para as comunidades carentes. É exaustivo enumerar as diversas funções que Laura Milheiro exerceu na vida pública. Mesmo contando com o apoio de diversas pessoas na criação destas instituições, Laura Milheiro era de fato a timoneira destes projetos, já que assistência social sempre fora a sua missão.
Já no executivo municipal, exerceu funções públicas no governo de Amâncio de Azevedo, Alencar Barroso, Paulo Azevedo e Nelci da Silva. Pertencia aos quadros da comissão executiva do PTB, depois do MDB, futuramente PMDB, sendo que até o final de sua vida, mesmo afastada das funções públicas, foi sempre procurada por políticos que lhe pediam aconselhamento. Não havia candidato que não passasse pelo “beija mão” de Laura Milheiro. No plano estadual participou do Movimento Popular de Alfabetização (MPA) no governo Roberto Silveira(PTB), onde tinha bastante trânsito e simpatias do governador, pois fizera aguerrida campanha em 1958, pela sua eleição. Laura Milheiro passou a ter a partir de então grande poder político e liderança na região, pedindo nada menos ao governador Roberto Silveira que transformasse Friburgo em capital do Estado do Rio. Ao que parece, o governo chegou sinalizar esta possibilidade: “...Senhor Governador, o povo vê hoje a concretização de um sonho que acalentava há anos, Friburgo tornar-se a capital do Estado...”. De fato, no final do século XIX, Friburgo disputou com Petrópolis e Campos o lugar de capital do Estado, mas Petrópolis acabou ganhando, se tornando capital, ainda que por um período efêmero.


Laura, como membro do PTB, sempre tecia preito a figura de Getúlio Vargas, que segundo ela, era um missionário. Pessoa muito religiosa, misturava sempre em seus discursos política com religião, como foi o caso de colocar os ideais da Revolução Francesa nas palavras de Jesus: “...Fazia-se mister o desmoronamento das castas nobres opressoras, para que a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade pregadas por Jesus pudessem entrar no mundo”. Militante, iniciava sua correspondência com a frase: “Saudações Trabalhistas!”.
Em sua correspondência com o governado Badger da Silveira, em agosto de 1963, Laura Milheiro se mostra como uma mulher ousada desafiando um delegado de polícia, onde fez campanha pela sua exoneração. Naquela época os delegados eram nomeados pelo governador. Acusou-o de conivência com marginais e de explorar a jogatina e o lenocínio na cidade. Em todos os ofícios, a assinatura de Laura era sempre a primeira.

Laura Milheiro se envolvia em tudo. Capacitação de mulheres operárias, tornando-as assim “ajudadora no lar”, amparo a maternidade, a infância, aos desvalidos e enfermos. Percebe-se sua preocupação sempre com a periferia da cidade e a zona rural. Somente mais de meio século depois que Laura Milheiro ingressou na vida pública é que vão surgir em Friburgo as primeiras mulheres candidatas aos cargos de vereador e prefeito, o que demonstra o seu vanguardismo à época. Chegou a ser candidata a prefeita, porém não logrou êxito, e seu santinho dizia: “um coração a serviço do povo, eficiência comprovada, realizações indiscutíveis”. Sua neta Ana Luiza se recorda que ela se sentia decepcionada com a política nos últimos anos de sua vida, tendo falecido em 22 de fevereiro de 2007. Não era para menos. A política mudou muito, os partidos se tornaram legendas de aluguel e como Laura Milheiro sempre manteve uma coerência política, uma ideologia linear, não poderia mesmo se adaptar aos novos ventos e práticas políticas.

Laura tinha como sua grande referência na política a figura de Getúlio Vargas e se sentia legatária e responsável em cumprir à risca o que Getúlio deixara em sua carta testamento quando de seu suicídio. A Câmara foi muito feliz em indicar o nome de Laura Milheiro para sua tribuna. A oratória sempre foi a sua característica mais marcante. Por isso, deixo o leitor com a íntegra do seu discurso quando da inauguração da estátua de Getúlio Vargas, outrora Praça 15 de Novembro, para conhecermos melhor o pensamento político de uma mulher cuja personalidade é cambiante da doce “Tia Laura” a aguerrida “dama de ferro”.


Exmo.Sr. Almirante Amaral Peixoto; Exmo. Sr. deputado Salo Branol, representante do Exmo. Sr. governador; Sr. deputado Dante Laginestra; Exmo. Sr. Prefeito e Vice-prefeito e demais autoridades presentes; meus senhores e minhas senhoras:

Com os olhos marejados de lágrimas pela saudade, venho de público trazer a minha singela cooperação a esta tocante cerimônia, onde estamos prestando o nosso preito de gratidão, pelo muito que recebemos do grande e inesquecível vulto do insigne brasileiro que foi o ex-presidente Getúlio Vargas.

Não me era possível silenciar, pois como vereadora do Partido Trabalhista Brasileiro(...) é com lágrimas nos olhos e o coração ferido pelo desaparecimento prematuro do defensor do direito do pobre e do desprotegido da sorte, para quem reservou os últimos pensamentos e a quem tanto ainda desejava ajudar, que hoje prestamos esta homenagem póstuma, pois de vindo fora, receberia as mais vivas demonstrações de reconhecimento e gratidão dos verdadeiros getulistas deste grande Brasil, estivesse ele onde estivesse.

Só quem sem paixão, com o coração sereno, contempla a obra deste grande estadista, pode ver o quanto fez pela nossa querida pátria, dando-lhe a melhor da lei trabalhista.

Ao ver a situação aflitiva do trabalhador, debatendo-se este com a miséria no lar, quando a enfermidade batia à sua porta, vivam os trabalhadores na mais completa desorganização, sem um objetivo, sem um ideal. Faltava-lhes a necessária compensação e com ela o desejo de progredir.
Quantas vezes o operário cumpria o seu dever sob as agruras da fome, sentindo no trabalho, a ressoar aos ouvidos as lamentações dos filhos famintos que ficaram no lar sem conforto, e da esposa a solicitar-lhe o necessário para a sobrevivência dos seus. Os seus filhos eram criados como seres irracionais, sentindo desde os primeiros instantes de vida as privações do lar proletário.

Nos dias de hoje, as reivindicações dos trabalhadores encontram acolhida e são estudadas pelos órgãos competentes do Ministério do Trabalho.
O sempre lembrado presidente Vargas é hoje o ídolo do operário nacional, porque organizou o trabalho, criou a justiça, deu valor ao trabalhador e sobretudo disciplinou as classes, dando-lhes participação na ordem política e administrativa do país, conferindo-lhes assim o gozo de viver com ideal.

Muito poderia falar enumerando todos os empreendimentos do grande presidente, em prol dos operários e trabalhadores em geral.
As gerações futuras, provindas dos trabalhadores do Brasil, hão de ser gratas ao destino que em boa hora fez surgir na vida pública a personalidade de Getúlio Vargas. E o Brasil lhe será credor de tão sublimes empreendimentos.
Há dez anos passados, já escrevia o escritor patrício, Mozart da Gama: “O Brasil, grande entre os maiores, há de ter perpetuada em bronze, para conhecimento das gerações futuras, o vulto de um filho que o conduziu a glória e ao esplendor.” A profecia cumpriu-se em nossa cidade, ao ser inaugurado hoje este belo monumento.

Getúlio Vargas, os brasileiros que comungam dos mesmos ideais pelos quais sempre lutastes, continuarão a obra que iniciaste, e aqui, junto a tua pessoa, perpetuada neste bronze, renovarão os propósitos de continuar a obra que não te deixaram realizar, de tornar a nossa querida Pátria amada e respeitada por todos nós.
(Discurso proferido em 19 de abril de 1955, por ocasião da inauguração da estátua de Getúlio Vargas, na praça que lhe deu o nome, por Laura Milheiro Freitas)

Fonte: Acervo particular de Ana Luiza Milheiro de Freitas.



Sobre o Vídeo: Carta-Testamento de Getúlio Vargas.
Segunda-feira, dia 24 de agosto, dia dramático. em que Getúlio Vargas, com um tiro no próprio coração, deteve o golpe de direita que estava em marcha e que, afinal, viria dez anos depois. A conspiração golpista, liderada pela UDN, sem poder atacar Getúlio, construiu sobre seus auxiliares e familiares a história de um mar de lama.

O atentado que matou o major Rubens Vaz, segurança de Carlos Lacerda, desencadeou uma ação arbitrária de setor militares ligados à direita que subverteram a investigação legal do incidente e a transformaram num atrabiliário inquérito que ficou conhecido como a República do Galeão.

Getúlio jamais obstaculizou qualquer investigação. Aos 72 anos, cercado de auxiliares vacilantes e com fraco apoio militar, sabia que já não teria como resistir aos golpistas pela via política.

Usou, então, uma arma mutio mais potente que o pequeno revólver Smith &Wesson, calibre 32, do qual partiu a bala que feriu de mortalmente seu coração. Usou a própria morte como arma da democracia e saiu da vida para entrar na história.

Sua Carta-Testamento, talvez o mais marcante documento da História do Brasil, é famosa, mas pouco conhecida. Fui achar o áudio de uma leitura dela não aqui, no Brasil, mas nas fonotecas de duas universidades, uma de Caracas, na Venezuela, e outra de Santo Domingo, na república Dominicana.



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